terça-feira, 19 de maio de 2020

Uma só enzima pode explicar por que o coronavírus mata mais homens que mulheres?

Uma só enzima pode explicar por que o coronavírus mata mais homens que mulheres?

Proteína que serve como porta de entrada para o vírus tem também propriedades anti-inflamatórias que protegem contra as manifestações graves da covid-19


Daniel Mediavilla
18 may 2020 - 13:53 BRT
Cerca de 60% dos mortos por Covid são homens.
Cerca de 60% dos mortos por Covid são homens.Álex Zea / Europa Press

O senso comum, com seus atalhos para simplificar as complexidades da vida, pode ser um obstáculo ao conhecimento. O presidente dos EUA, Donald Trump, caiu há alguns dias em um erro típico do pensamento intuitivo quando aplicado à solução de problemas de saúde. Se aspergir desinfetante sobre superfícies nocauteia o vírus em um minuto, por que não injetá-lo nos pacientes contagiados pelo novo coronavírus? No extremo oposto, não pareceria muito razoável administrar substâncias venenosas a um paciente debilitado por um câncer, mas décadas de estudo demonstraram que fazer isso desacelera a enfermidade.
Poucas semanas depois da aparição do novo coronavírus, já se falava da ECA2 (enzima conversora da angiotensina-2) como uma das portas de entrada do vírus nas células humanas. Essa enzima, fundamental na regulação da pressão arterial, também servia como via de assalto para o SARS-CoV, o parente do atual vírus que causou uma epidemia em 2003. Aplicando o senso comum, níveis maiores de ECA2 facilitariam a entrada do vírus. Essa ideia produziu momentos de confusão nas últimas semanas. Os medicamentos para a pressão alta, por exemplo, elevam os níveis desta enzima e levaram a crer que poderiam agravar o curso da covid-19. E algo semelhante ocorreu com o ibuprofeno. Também foi publicado que os homens morrem mais dessa doença por terem mais ECA2 no sangue. A história é mais complexa.
Segundo José Luis Labandeira, catedrático de Anatomia Humana da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), “o sistema da angiotensina tem dois eixos, um que poderíamos chamar de ruim, pró-inflamatório, que representado pela enzima ECA, e um bom, anti-inflamatório, o da ECA2”. “Os genes da ECA2 e algum outro componente do eixo anti-inflamatório se expressam no cromossomo X e, como as mulheres têm dois, têm uma maior expressão desses componentes benéficos”, acrescenta Labandeira.
Com estas características, as mulheres estariam em desvantagem com sua maior carga da proteína que serve de via de acesso ao vírus, mas seu efeito anti-inflamatório protege das manifestações mais letais da doença, como as pneumonias. Um indício de que neste jogo de equilíbrio o efeito benéfico ganharia do prejudicial é que a maioria dos mortos são pessoas em idade avançada, e a presença da ECA2 diminui com o passar dos anos. “Pelo que sabemos até agora, parece que ECA2 é uma faca de dois gumes e temos que aprender a lidar com ela, vendo como manter seus efeitos positivos e bloqueando só os fragmentos concretos que servem de porta de entrada para o vírus”, conclui Labandeira.
Bloquear parte da enzima, mas sem anulá-la, é um minucioso trabalho biotecnológico que já está sendo feito por vários grupos de pesquisa e empresas de todo o mundo a partir dos anticorpos monoclonais, moléculas que podem aderir a trechos precisos dos vírus para incapacitar sua seção de ataque ou seu processo de reprodução. E há alternativas ainda mais originais.
Em Valência, no Instituto da Biomedicina do CSIC (agência estatal de pesquisa científica da Espanha), Alberto Marina e Vicente Rubio procuram conservar o anverso positivo da ECA2 utilizando a seu favor o reverso tenebroso da enzima. Seu objetivo é desenhar variantes artificiais da proteína que não influam, por exemplo, na pressão arterial do paciente, mas que possam funcionar como isca para que o SARS-CoV-2 se una a elas e deixe o organismo em paz. Rubio, que lidera com Marina esse projeto do Ciberer (Centro de Pesquisa Biomédica em Rede de Doenças Raras, na sigla em espanhol), conta que um dos impulsos para iniciar o projeto foi uma morte próxima, a de sua primeira técnica de laboratório, com pouco mais de 70 anos. “Tentaram de tudo com ela e nada funcionava, e achei que eram necessárias alternativas”, recorda.
A experiência da equipe do Ciberer vem da biologia estrutural. Observam as proteínas com detalhe atômico e veem como umas se encaixam nas outras, como peças de um quebra-cabeça. “Queremos fabricar um super-receptor, que tenha uma afinidade aumentada pelo vírus”, explica Rubio. Junto a essa tentativa de fabricar um medicamento, que se encontra em uma fase muito preliminar, querem compreender melhor o mecanismo que permite ao vírus infectar as células, para poder desenhar moléculas específicas que impeçam essa invasão, em lugar de testar inúmeras até encontrar uma que funcione.
No caminho, para fabricar uma isca melhor, querem estudar se há variantes genéticas que expliquem por que algumas populações são mais suscetíveis ao vírus que outras. “A população afro-americana, por exemplo, tem níveis menores de ECA2 e observou-se que a pressão arterial está relacionada com a cor da pele, e que os afro-americanos têm uma patologia cardiovascular mais acentuada”, explica Marina. “Agora, estão sendo buscadas correlações deste tipo que sejam sólidas para depois analisar se existe casualidade”, conclui.
Decifrar os mecanismos precisos que explicam o funcionamento desta enzima e sua relação com o coronavírus ajudará a superar as armadilhas do senso comum para começar a compreender o que está acontecendo e poder agir com conhecimento.

Fonte: El País

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