O cientista que pesquisou por curiosidade e acabou curando uma doença rara
Autoridades dos EUA aprovam tratamento que pode reparar uma falha genética que causa a atrofia muscular espinhal, que costuma matar os pacientes de asfixia antes dos dois anos de idade
Daniel Mediavilla
Uma da cada 10.000 pessoas nasce com atrofia muscular
espinal (AME), um defeito dos neurônios motores que arrebata a força aos
músculos, limita a mobilidade e acaba matando por asfixia. Poucos das crianças
que a sofrem superam os dois anos de idade e até agora não existia um
tratamento efetivo. Isso vai mudar. A véspera de Nochebuena do ano
passado, a Administração de Medicamentos e Alimentos de EUA (FDA)
aprovou o uso de um tratamento
que pode consertar a sentença genético causante da AME. Os bons
resultados com o medicamento obrigava a parar dois ensaios clínicos em
2016. Os responsáveis não consideraram ético que os pacientes no grupo
de controle, que não recebem o fármaco para comprovar a vantagem real
dos que sim o recebem, seguisse sem beneficiar de seus efeitos. Em umas
semanas antes de sua aprovação, a revista científica The Lancet publicava um artigo que apontava a que nusinersen, como se batizou ao medicamento, atuava sobre o cérebro e a medula espinal como cabia esperar.
Juan Valcárcel, investigador ICREA do Centro de Regulação Genómica de Barcelona (CRG) e presidente da Sociedade do ARN,
considera este trabalho um exemplo pela forma em que se fundiu “a
investigação fundamental de qualidade, a visão industrial, o ativismo
social e a flexibilidade administrativa”. Valcárcel, que não participou
no desenvolvimento deste fármaco, é experiente em splicing, o processo natural que o fez possível. “Nossos genes
estão escritos em uma linguagem muito estranha. Se quer escrever uma
frase, fá-lo com sujeito e pregado, com um sentido contínuo”, explica
Valcárcel. “O genoma não está escrito assim. Tem primeiro uma palavra,
depois letras sem sentido, depois outra parte com palavras que se
entendem, depois mais sinsentido…”, continua. “O splicing [que
se traduz como juntar] elimina o lixo e põe juntas as partes da frase
que podem fazer sentido”, acrescenta. Este sistema permite-lhe à célula
que um mesmo gene possa ter diferentes leituras e produza diferentes
proteínas com diferentes funções em nosso organismo.
As pessoas com AME têm um defeito no mecanismo de cortapega
destas mensagens genéticas. Um defeito na produção de uma proteína,
causada pela mutação do gene SMN1, provoca a sentença dos neurônios
motores. A princípios da década passada, o pesquisador uruguaio Adrian
Krainer, no Laboratório de Cold Spring Harbor, cerca de Nova York (EUA),
tratou de compreender o que Valcárcel considera uma curiosidade mais
bem marginal à causa da doença:
a razão pela qual SMN2, outra cópia do gene defeituoso SMN1, não podia
fornecer sua função e manter o bom funcionamento dos neurônios.
Esta indagação no mecanismo molecular de um gene
aparentemente inútil não era precisamente um caminho condenado ao
sucesso. De fato, a focagem de Krainer e sua equipe já era provado sem
demasiado sucesso para outras aplicações biotecnológicas. Seu aposta
consistia em produzir umas moléculas sintéticas que imitavam ao ARN, a
molécula encarregada de transmitir a informação do DNA
para a produção de proteínas, para devolver ao gene SMN2 sua capacidade
para gerar proteínas efetivas. Depois de muito esforço e o apoio
financeiro tanto público como de associações de afetados pela doença,
observaram que suas moléculas funcionavam em cultivos celulares e em
modelos animais.
Mas o sucesso no laboratório ainda estava longe dos
pacientes e aí entraram em jogo duas companhias para levar o projeto até
o resultado final. Em primeiro lugar, a empresa californiana Ionis Pharmaceuticals,
que colaborou com Krainer para modificar as moléculas de ARN com o fim
de obter compostos mais eficazes e estáveis. Nesta etapa foi necessária
também a participação de investidores de risco e desempenhou um papel
importante o espanhol Frank Rigo, um dos diretores científicos da
empresa. Por último, para financiar a fase mais cara de ensaios
clínicos, foi necessária a incorporação de outra companhia
norte-americana, Biogen, especializada em tratamentos para doenças
neurológicas.
Segundo explicava-se no artigo de The Lancet , o
efeito do fármaco, que se injeta no fluído cerebroespinal que banha a
medula, se provou em 20 pacientes que se incorporaram ao estudo entre
2013 e 2014. Embora muitos tiveram reações adversas importantes, os
autores do estudo consideram que não estão relacionados com o
medicamento que se provava, e 13 deles permanecem com vida. Os
responsáveis pelo estudo em fase III, no que se incluíram mais
pacientes, afirmam que os resultados são ainda melhores, embora ainda
não estão publicados em revistas científicas.
Valcárcel comenta que outra das surpresas positivas do
tratamento é que mantém seu efeito durante muito tempo. “Aplicam-se três
injeções durante o primeiro mês e depois só é necessário repetir a
operação uma vez a cada em vários meses”, assinala. Com essas doses,
muda-se a forma em que se juntam as mensagens do gene para que tenham o
significado adequado e produzam a proteína que permite um bom
funcionamento dos neurônios motores. À vista destes dados, a FDA,
consciente de que não existia nenhum tratamento alternativo, acelerou o
processo de avaliação dos ensaios para facilitar sua chegada aos
doentes.
O conhecimento do splicing está-se utilizando já para
combater outro tipo de doenças. "Em nosso laboratório, em colaboração
com Ionis Pharmaceuticals, estamos trabalhando em outras aplicações
deste tipo de técnica, por exemplo para o câncer e a disautonomia
familiar. Estamos ainda em fases muito temporãs destas investigações",
afirma Krainer. Como se trata de um processo fundamental, que ocorre em
todas nossas células, este junte das mensagens genéticas pode ser
convertido em uma maneira de modificar sua expressão a vontade. Em
qualquer caso, este tratamento é uma amostra de que a busca de
aplicações específicas não é a única forma de chegar a elas. O trabalho
de Krainer começou como uma tentativa de entender em profundidade o
funcionamento da natureza. Daquela busca intelectual, como aconteceu
muitas outras vezes, surgiu ao final uma cura.Fonte: El País
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