sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O fim da evolução humana

O fim da evolução humana


Avanços científicos e tecnológicos fazem com que os humanos escapem dos efeitos da seleção natural

Experiência do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Lausanne para controlar um computador com pensamentos.
Experiência do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Lausanne para controlar um computador com pensamentos.

Alguns anos atrás, o naturalista britânico David Attenborough anunciou numa entrevista o fim da evolução humana. “Detivemos a seleção natural a partir do momento em que fomos capazes de criar entre 95% e 99% dos bebês que nascem”, disse. Em lugar disso, propõe, os humanos continuarão a evolução a partir da cultura, herdando e aperfeiçoando o conhecimento das gerações anteriores.
A afirmação de Attenborough pode ser válida, mas só num ambiente e numa etapa muito particulares da evolução dos seres humanos. “Os ocidentais não são muito representativos da espécie, porque uma grande parte dos habitantes do planeta continua vivendo segundo patrões biológicos e sociais ainda ancorados a regras mais tradicionais, sobrevivendo e se reproduzindo em função de suas capacidades biológicas”, aponta Emiliano Bruner, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas sobre a Evolução Humana (CENIEH), de Burgos (Espanha).
Em 2007, Andrea Migliano, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), publicou os resultados de um estudo sobre dois grupos de pigmeus das Filipinas. Aqueles indivíduos, acuados pela pobreza e sem acesso a avanços sanitários tidos como básicos no mundo desenvolvido, sofriam uma elevada taxa de mortalidade que continuava a submetê-los às pressões da evolução. Para combater a falta de recursos e as mortes prematuras, seus corpos se desenvolvem mais rápido, se reproduzem antes e são menores.
Retrocedendo um pouco mais, mas não muito no contexto dos 200.000 anos que a nossa espécie já acumula sobre o planeta, pode-se viajar à Península Ibérica de 38 séculos atrás. Na época já havia surgido a pecuária, mas, como mostraram exames em amostras de DNA recolhidas no sítio arqueológico de Portalón, em Atapuerca (centro-norte da Espanha), os habitantes daquela região ainda não eram capazes de beber leite. Em mamíferos como os humanos, só as crias dependentes da mãe têm a capacidade de digerir esse alimento. Depois, para garantir que os maiores não fiquem viciados no peito da mãe, a evolução favoreceu o desligamento do gene que produz a lactase, uma enzima intestinal que permite digerir a lactose, o principal nutriente do leite. A partir desse momento, beber leite deveria quase sempre causar dor de estômago ou mesmo uma perigosa diarreia.
Hoje em dia, 40% dos habitantes da península podem tomar leite. Essa mudança evolutiva recente pode ter sido decorrente de uma situação de fome generalizada, que teria obrigado aqueles humanos a se arriscarem com o leite. Algumas estimativas sugerem que essa mutação foi tremendamente benéfica para superar situações extremas, aumentando em até 19% o número de descendentes dos mutantes capazes de aproveitarem o leite dos animais com os quais conviviam.
Apesar das novas circunstâncias para os habitantes do mundo desenvolvido, mudanças como a dos pigmeus ou a adaptação ao consumo de leite mostram que, bem ou mal, a evolução continua atuando sobre os humanos. Entretanto, as principais ferramentas humanas para se adaptar ao seu entorno são a cultura e a tecnologia. Os humanos que conquistaram as regiões próximas ao Ártico eram anatomicamente iguais aos que saíram da África para conquistar o mundo 70.000 anos atrás.
“Somos a única espécie que estendeu suas capacidades cognitivas para muito além de seus neurônios, delegando novas e velhas funções a elementos externos que chamamos de tecnologia. Então isso por si só já basta para alterar radicalmente o conceito de adaptação. Introduzem-se novas regras, onde a biologia e a cultura se influenciam mutuamente, segundo mecanismos que desconhecemos totalmente”, explica Bruner. “Se continuarmos tendo uma população tão grande e dispersa como a de agora, uma evolução genética é improvável, e é mais fácil que as mudanças evolutivas correspondam mais à relação com a tecnologia”, acrescenta.

Marc Furió, pesquisador do Instituto Catalão de Paleontologia Miquel Crusafont (ICP), observa que, embora não se note uma mudança notável na morfologia dos humanos nos últimos 200.000 anos, “à medida que o tempo passou evoluímos muito do ponto de vista cultural, e isso afinal teve um efeito em nossa biologia; a expectativa de vida média não é a mesma agora do que há 300 anos, ou mesmo há 20”.
O órgão que permitiu as mudanças culturais e tecnológicas que transformaram o significado de uma vida humana foi o cérebro. Como recordava Furió, o Homo sapiens manteve sua aparência externa praticamente inalterada nos últimos 200.000 anos, mas se sabe que há cerca de 70.000 apareceram mudanças que transformaram aqueles personagens africanos em um ser diferente. A tecnologia lítica, a arte rupestre e a capacidade de deslocar espécies humanas anteriores dos lugares invadidos sugerem que os humanos modernos contavam com uma mente muito mais poderosa. O que desencadeou essa mudança ainda é um mistério.
A exposição às novas tecnologias já está afetando nossa capacidade de atenção ou nossa forma de nos orientar no espaço, mas, como recorda Facundo Manes, neurocientista e reitor da Universidade Favaloro, de Buenos Aires: “Devemos levar em conta que nosso cérebro é produto de milhares de anos de evolução e apesar das novas tecnologias influírem em nós, não vão gerar, por exemplo outro lóbulo cerebral”. Pelo menos em médio prazo. Até o momento, já se sabe que a demanda de atenção exigida pelas novas tecnologias deteriora nossa atenção e, quando o uso é excessivo, gera estresse. Mas, apesar de muitas pessoas terem uma visão apocalíptica dessas inovações porque debilitam a memória, Manes oferece uma visão mais positiva. “A memória humana não é um reservatório de dados. Uma de suas funções principais é relacionar esses dados que podemos ter obtido no computador, em um livro ou de algo que um amigo nos tenha dito”, comenta.
Como em outras ocasiões, o cérebro está adaptando a novos usos capacidades favorecidas pela evolução para realizar tarefas antigas. Os humanos não precisaram de nenhuma mudança genética para começar a ler, bastou reutilizar a habilidade desenvolvida para reconhecer rostos, muito útil para a sobrevivência de um animal tão social. Até o momento, as novas tecnologias estão reciclando capacidades surgidas há dezenas de milhares de anos para captar nossa atenção e o cérebro está reorganizando suas habilidades para aproveitar as opções que o novo entorno oferece.
Outra direção que pode mudar o futuro da humanidade sem necessidade de transformar a biologia é a melhora cerebral por meio da tecnologia. “Um avanço que parece inspirado na literatura de ficção científica é representado pelas experiências que tentam fazer a comunicação de cérebro para cérebro, ou seja, que trocam pensamentos de forma direta e não mediada”, afirma Manes. “Pesquisadores da Duke University conseguiram transmitir mensagens simples entre dois roedores localizados em diferentes continentes e foram pioneiros em demonstrar a comunicação de cérebro para cérebro”, continua. “Em um experimento recente, com o uso de eletroencefalografia para decodificar o sinal neural e de estimulação magnética transcraniana para induzir o disparo neuronal, dois seres humanos conseguiram transmitir pensamentos para seus cérebros. Tenta-se conhecer o que uma pessoa pensa por meio de um eletroencefalograma para depois, ao usar esses dados, produzir um padrão específico de atividade neuronal em outro indivíduo por meio de corrente elétrica ou campos magnéticos”, explica.

Até agora, a resposta da biologia humana às mudanças ambientais parece que será sobretudo questão de reciclagem. Os processos de seleção mais estritos, que deram lugar a muitos traços dos humanos modernos, foram suavizando. “O momento atual, do ponto de vista da pressão evolutiva, é um momento de trégua”, afirma Furió. “Isso fez com que aumentasse nossa expectativa de vida, mas trata-se de uma situação circunstancial”, acrescenta. “Para conseguir os avanços da sociedade atual utilizamos muitos recursos naturais e em algum momento esses recursos vão faltar e haverá mudanças”, continua. “Em minha opinião, o mais provável em longo prazo, levando em conta o ritmo em que as mudanças estão ocorrendo, é que o ser humano se extinga.” “Mas se nos livrássemos dos obstáculos que enfrentaremos e parte da humanidade sobrevivesse, pode ser que houvesse algumas mudanças, como a melhoria da eficiência energética em nível biológico”, conclui.
É possível que a situação em que mais de 90% das crias humanas sobrevivam seja uma anomalia histórica com data de validade, mas os seres humanos são bichos peculiares. Inclusive analisando o sucesso da expansão dos Homo erectus, que saíram da África e colonizaram a Ásia e até a Indonésia, ou a tecnologia e o incipiente pensamento simbólico dos neandertais, há 200.000 anos, ninguém teria previsto que aquela espécie de macacos que sobrevivia a duras penas na savana africana poderia um dia viajar para a Lua, transplantar um coração ou colocar em perigo o equilíbrio climático do país. As mudanças radicais no entorno são um gerador fundamental de novas espécies, mas os sapiens demonstraram que são a única espécie capaz de mudar tudo continuando igual.

Fonte: El Pais

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