A água invisível que “comemos” todo dia sem saber (e seus problemas)
Podemos passar a
vida inteira alheios ao fato de que água não só mata a sede, mas também
sacia a fome, o que faz da agricultura uma atividade sedenta
22 mar 2018, 12h11 - Publicado em 22 mar 2018, 05h35
São Paulo – Comer água?
A escolha das palavras pode parecer estranha, mas, acredite, nós
“comemos” um monte de água todos os dias sem nos darmos conta. Por dia,
uma pessoa bebe de 2 a 4 litros de água, incluindo a contida em sucos,
refrigerantes e outras bebidas. No mesmo período, consome de 2 mil a 5
mil litros de água na forma de alimentos. Tudo quanto é alimento precisa de água para crescer, o que torna a agricultura um negócio extremamente sedento.
Sozinha, a atividade responde, em média,
por 70% do consumo mundial do recurso. Mas isso é tão óbvio! Você deve
estar pensando, e tem razão. Mas a obviedade tende a cair no
esquecimento, já que não exige esforço para ser lembrada ou assimilada.
Podemos passar uma vida inteira alheios ao fato de que água não mata só a
nossa sede, mas também sacia a nossa fome. Neste Dia Mundial da Água,
aproveitemos o momento para refletir.
No rótulo do pão de forma integral ou do
biscoito, água sequer é ingrediente. Mas para cultivar o trigo e
produzir a farinha refinada, base desses alimentos, gasta-se na média
mundial 1,8 mil litros de água por quilo. Cerveja aguada, não dá né?
Mas, acredite, para produzir um copo de cerveja (de 250 ml), lá se vão
outros 75 litros de água, sendo que a maior parte disso é só para
cultivar cevada e outra culturas envolvidas na produção da bebida.
São números volumosos que passam
despercebidos por nós, consumidores, mas que podem ser estimados pelo
cálculo da chamada “pegada hídrica”, do inglês “water footprint”.
O conceito da pegada hídrica,
desenvolvido pelo pesquisador holandês Arjen Y. Hoekstra, abrange a
quantidade de água total direta e indiretamente usada para produção de
um produto. Sua essência se assemelha às de outras metodologias de
contabilidade ambiental, como a pegada ecológica e de carbono: entender
de que maneira a forma como vivemos, produzimos e consumimos deixa
marcas no meio ambiente.
E o resultado pode surpreender. São
necessários 1,7 mil litros de água, em média, para cada quilo de arroz
colhido (que é transportado com casca para a usina de beneficiamento). A
mesma quantia de batata exige, em média, 290 litros, ao passo que a
laranja exige mais de 530 litros por quilo. Tais cálculos levam em
conta médias mundiais e, por tanto, variam de um país para o outro,
dependendo das condições de cultivo, do clima, solo e técnicas
empregadas.
Num país como o Brasil, megaprodutor de commodities
agrícolas, junto com os contêineres cheios de café, soja, milho e
açúcar que deixam os portos rumo ao mercado internacional todos os anos,
saem toneladas de água, que foram usadas para a produção desses
alimentos.
Exportamos, por ano, 112 trilhões de
litros de água virtual, segundo dados da Unesco compilados com base na
metodologia da pegada hídrica. Somos o quarto maior exportador de “água
virtual” do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Índia e
China.
Setor pecuário
À medida que o Brasil se consolida como
um grande fornecedor de proteína animal, com um crescimento acumulado na
produção de carne bovina estimada em 10,4% entre 2017 e 2021, aumentam
as preocupações sobre o volume de água embutido nessa produção. Na média
mundial, o volume de água necessário para produzir 1 kg de carne bovina
é de 15,4 mil litros.
O cálculo desse número é complexo, e
depende de vários fatores, como local do sistema de produção, tipo de
animal, o volume de água empregado na produção de insumos, como
fertilizantes e medicamentos, a água usada na produção da ração animal,
passando pelo volume usado na fazenda para dessedentação, irrigação e
lavagem de instalações, até a água necessária para processar a carne que
vai chegar ao consumidor final.
“Apesar da complexidade, esforços para
conhecer o valor da pegada contribuem para melhorar a gestão da água na
cadeia da pecuária e mitigar possíveis impactos. Mais importante do que
chegar a um número, é mapear a relação dos elos da cadeia com a água”,
explica ao site EXAME o pesquisador da
Embrapa Pecuária Sudeste, Julio Cesar Pascale Palhares, que estuda os
impactos das produções animais nos recursos hídricos.
Nos últimos anos, a Embrapa tem se
debruçado sobre a calculadora, na tentativa de desenvolver indicadores
de eficiência hídrica para avaliação do desempenho das diversas cadeias
produtivas da carne brasileira. A meta é avaliar a sustentabilidade da
atividade, possibilitando a identificação de pontos críticos no uso da
água e ações para reduzir impactos negativos, melhorar a eficiência
hídrica da produção e de quebra reduzir custos.
Praticar irrigação noturna, construir
cisternas para captar água da chuva, instalar hidrômetros na
propriedade, substituir mangueiras de fluxo contínuo por modelos de
fluxo controlado e adotar programas de detecção de vazamentos são
algumas medidas simples que ajudam o produtor rural a diminuir o consumo
de água na fazenda.
Pequenos ajustes na dieta animal também
dão sinais promissores. Em estudo sobre a pegada hídrica do leite com
fazendas parceiras, os pesquisadores da Embrapa conseguiram reduzir em
três litros o consumo diário de vacas leiteiras (15% de redução da
pegada), com uma intervenção nutricional baseada no ajuste de proteínas
na dieta durante o período de lactação. Segundo Palhares, considerando
um rebanho de gado leiteiro de 100 animais, e o período de lactação em
torno de dez meses, a economia de água passaria dos 9 mil litros.
Embora as oportunidades para melhorar a
gestão da água no setor sejam vastas, a disseminação de boas práticas no
campo dependem de mudanças profundas de hábitos.
“Os produtores precisam internalizar no
seu dia a dia o manejo hídrico, usar práticas, manejos e tecnologias que
conservem água em quantidade e qualidade. Se ele está andando na
propriedade e vê uma mangueira pingando, ele deve resolver isso. É
importante enxergar a água como um fator essencial de produção, como é a
ração, por exemplo. O maior limitante é a questão cultural, aprendemos
que no Brasil água é abundante e barata. Mas temos que desconstruir essa
ideia, pois água é na verdade um recurso valioso, finito e com custo
econômico e ambiental”, diz o pesquisador da Embrapa.
E não devemos nos esquecer que tão
importante quanto ter água abundante é ter água em qualidade. A poluição
hídrica, causada por agrotóxicos, fertilizantes e outros produtos
agroquímicos que escoam para os lençóis freáticos, contaminando rios,
lagos e reservas subterrâneas, é um problema crescente em todo o mundo e
que compromete a saúde do meio ambiente.
A edição 2018 do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, divulgada no Fórum Mundial da
Água, que ocorre em Brasília, estima que a produtividade agrícola
poderia aumentar em cerca de 20% em todo o mundo se práticas de manejo
de água mais ecológicas fossem usadas.Um estudo citado pelo relatório analisou projetos de desenvolvimento agrícola em 57 países de baixa renda e descobriu que o uso mais eficiente de água combinado com as reduções no uso de defensivos agrícolas e melhorias na cobertura do solo, aumentou a produção média de safras nos países estudados em 79%.
Desperdícios vão muito além do campo
Como você já deve ter percebido, nossos
pratos estão transbordando de água. Mesmo com técnicas aprimoradas e
eficientes de cultivo com menor desperdício, sempre precisaremos de água
para plantar. Por isso, a responsabilidade pelo consumo consciente e
eficiente de água vai muito além do campo e do agricultor.
Atualmente, o mundo desperdiça nada menos
do que um terço dos alimentos que produz, de acordo com estudo do World
Resources Institute (WRI) em parceria com o Programa Ambiental das
Nações Unidas (Pnuma). A cada ano, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos
vão parar no lixo, um desperdício ultrajante de comida que reflete um
desperdício de recursos naturais, contribuindo assim para impactos
ambientais negativos.
Pelos cálculos da ONU, a água utilizada
para produzir esses alimentos que são desperdiçados poderia encher 70
milhões de piscinas olímpicas, enquanto a quantidade de terras
cultiváveis usadas para essa produção perdida é equivalente ao tamanho
do México. Para piorar, um quarto da agricultura mundial está em áreas
que sofrem um forte estresse hídrico, ou seja, onde a demanda de água
supera, em muito, a oferta.
Em um Planeta mais quente, sujeito a eventos climáticos extremos, os
danos à agricultura tendem a aumentar. De acordo com um novo relatório
da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO),
entre 2005 e 2015, os desastres naturais custaram aos setores agrícolas
das economias dos países em desenvolvimento US$ 96 bilhões em prejuízos.
Isso representa quase um quarto de todas as perdas financeiras causadas
por catástrofes naturais no período.
Há uma potencial crise a caminho, que
poderá ser deflagrada pelo aumento populacional, a crescente pressão
sobre os recursos naturais e um clima cada vez mais arisco. Em 1950, o
planeta tinha três bilhões de habitantes; em 2050, seremos nove bilhões,
o que colocará uma pressão adicional sobre os recursos hídricos.
Frente ao cenário nebuloso que se
avizinha, compreender a relação entre a água e os padrões de produção e
consumo de alimentos é um caminho, no mínimo, inteligente e saudável de
mitigar riscos e, quem sabe, reduzir nossa pegada no mundo.
Fonte: EXAME
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