Cambridge Analytica e a nova era Snowden na proteção de dados pessoais
Talvez
os escândalos sirvam para fomentar a adoção de tecnologias que permitam
uma transparência quase que radical nas campanhas eleitorais digitais
Renato Leite Monteiro
O conceito de privacy by design, ou
privacidade desde a concepção, é a ideia de que a proteção da
privacidade e aos dados pessoais deve ser pensada e implementada desde a
concepção de um produto ou serviço. Do seu desenho inicial ao
oferecimento ao mercado, recomenda-se a sua aplicação a todos os modelos
de negócio que se valham de dados pessoais. Nasceu da ideia, dentre
outras, de que somente as normas, leis e regras jurídicas podem não ser
suficientes para assegurar tais direitos. As violações aparentemente perpetradas pela empresa Cambridge Analytica
talvez revelem ser o momento ideal para (re)discutir não só esse
conceito, mas como podemos, e devemos, proteger a privacidade e dados
pessoais numa época em que estes podem ser considerados os ativos mais
valiosos de um capitalismo movido a dados.
A Cambridge Analytica (CA) é uma empresa de
marketing digital. Como muitas outras, seu modelo de negócio é baseado
quase que inteiramente no uso de dados pessoais para analisar o
comportamento de seus titulares ou de um grupo de pessoas com o objetivo
de descobrir seus interesses, gostos e preferências. Ao conseguir
inferir esses traços, a empresa pode oferecer conteúdo dirigido aos
usuários, ou micro-propagandas — behavior microtargeting —, no
seu caso. Todavia, diferentemente do praticado pela grande maioria das
empresas desse ramo, a CA se vangloria em conseguir alterar o
comportamento dos usuários. Sua página principal e sua conta no Twitter deixam claro que o foco da companhia é a alteração de comportamento por meio do uso de dados (“data-driven behavior change”).
Ainda que isso não seja propriamente uma novidade na publicidade, nunca
havia sido implementada com a magnitude, precisão e eficácia da CA. Nas
palavras do CEO da empresa, Alexander Nix (afastado recentemente), em evento no ano passado, “nós
conseguimos usar dados para identificar que haviam quantidades muito
grandes de eleitores que poderiam ser persuadidos e influenciados a
votar na campanha Trump”. Por esta razão, a empresa foi contratada
para trabalhar em campanhas eleitorais não só nos EUA, que culminou com a
vitória de Donald Trump, mas também no Reino Unido, na campanha
Pro-Brexit, na Nigéria, no Quênia, na República Tcheca, na Índia, na
Argentina e, agora, até onde se tinha conhecimento, também no Brasil.
Entretanto, recentemente, o Facebook, maior rede social do mundo e meio
pelo qual a maioria das atividades da CA aconteciam, anunciou que estava
suspendendo a companhia por supostas violações a sua política de privacidade.
Por meio de práticas abusivas, a empresa
Cambridge Analytica conseguiu coletar dados pessoais de 50 milhões de
usuários do Facebook nos EUA, eventualmente cruzando-os com informações
eleitorais, de modo a permitir identificar e influenciar as suas
pretensões de votos, o que pode ter colaborado com a vitória do atual presidente Donald Trump.
Os dados foram obtidos por meio de um aplicativo que permitia, por meio
do consentimento do usuário, coletar os dados seus e dos seus amigos no
Facebook. O aplicativo foi desenvolvido por um pesquisador da
Universidade de Cambridge que informou que os dados pessoais seriam
coletados para fins de pesquisa científica. Talvez seja importante
ilustrar aqui que princípios gerais que regem o uso adequado de dados
pessoais em muitas legislações, inclusive no Brasil, determinam que
dados pessoais devem ser coletados e utilizados para finalidades
determinadas e legítimas. O uso para outras finalidades diferentes
daquelas que ensejaram a coleta somente pode se dar por meio de alguma
autorização, seja ela um consentimento efetivo do titular dos dados,
para o cumprimento de um contrato, uma obrigação imposta por uma lei ou
outros instrumentos jurídicos que variam com arcabouço jurídico vigente.
O uso dos dados para outros fins, sem a devida autorização, pode ser
considerado uma violação aos princípios gerais, a regras presentes em
muitas leis e a obrigações acordadas por meio de contratos como
políticas de privacidade. E isto, em suma, foi o que aconteceu. Os dados
que foram coletados para fins de pesquisa — até onde se sabe — foram
compartilhados e utilizados para fins comerciais, de análise de
comportamento e tentativa de influência em pleito eleitoral. O contexto
apresentado justifica que o caso deva receber toda a atenção da
audiência brasileira.
No ano passado a CA firmou sociedade com a
consultoria Ponte, formando a CA-Ponte, com o objetivo de atuar nas
campanhas eleitorais de 2018 por meio de uma versão tropicalizada das
metodologias aplicadas em outros países. A CA chegou a revelar que
pretendia focar no mercado nacional devido às frouxas leis de proteção de dados vigentes no Brasil — em claro desconhecimento ao panorama regulatório vigente, mais especificamente o Marco Civil da Internet.
Um ponto favorecia o modelo de negócio da CA. Recentes alterações na
Lei Eleitoral expressamente permitiram o impulsionamento de conteúdo
patrocinado por candidatos e partidos. Em outras palavras, está
permitido, dentro de alguns parâmetros, principalmente da transparência,
mas que ainda não foram claramente definidos pelo Tribunal Superior
Eleitoral, pagar para que conteúdos classificados como propaganda
eleitoral possam ser direcionados a usuários com base em seus
interesses, gostos e preferências. Restou desenhado o cenário perfeito
para que a CA ofertasse o seu modelo de negócio em uma das maiores
democracias do mundo. Mas a parceria não resistiu à onda de escândalos e
a Ponte anunciou que estava desfazendo a sociedade, apesar de declarar
que continuaria a buscar novas formas de atingir o eleitorado nacional.
Todavia, a legalidade no impulsionamento de conteúdo eleitoral persiste,
o que por si só já tem ocasionado diversas controvérsias,
principalmente referentes às “caixas-pretas” dos algoritmos que governam
e decidem os conteúdos que serão exibidos a usuários nas mais diferentes plataformas online.
Contudo, é possível analisar esse contexto sob diferentes óticas. E
aqui tomamos a liberdade de apresentar duas visões distintas. Primeiro,
no quesito transparência, talvez os escândalos envolvendo a Cambridge
Analytica sirvam para fomentar a adoção de tecnologias que permitam uma
transparência quase que radical nas campanhas eleitorais digitais.
Destacamos aqui a possibilidade de se usar blockchain, a tecnologia que
permite o funcionamento de criptomoedas como o Bitcoin, para manter um
registro, acessível a qualquer um, de toda a cadeia de impulsionamento
digital de conteúdo eleitoral patrocinado.
O blockchain
é como um grande livro razão, um banco de dados descentralizado, que
permite incluir um registro imutável de todas as transações que nele são
adicionadas. Da mesma forma que ele é usado para registrar todas as
operações feitas com Bitcoin, permitindo a qualquer um que as visualize e
analise a qualquer momento, ele pode funcionar para registrar todos as
interações de usuários com conteúdo publicitário digital, inclusive os
de cunho eleitoral. Em outras palavras, se um usuário forneceu seu
consentimento para a coleta de seus dados pessoais para finalidade de
recebimento de propaganda direcionada, seria possível limitar o uso dos
seus dados para este fim. Além disso, se um candidato ou um partido
pagou para que seu conteúdo fosse enviado diretamente para determinadas
audiências, com base nas preferências, gostos e interesses destas, isso
tudo ficaria registrado para sempre na Blockchain, e qualquer um,
indivíduos ou autoridades, poderia verificar se não houve violações,
dentre outras, de normas eleitorais vigentes. Portanto, por meio de
blockchain, seria possível ter uma visão clara de todo o ciclo de vida
do uso dos dados pessoais, limitando o uso destes para os fins que
ensejaram a coleta, quem pagou por determinado conteúdo e quantas vezes
este foi exibido, e para quem, permitindo uma trilha de auditoria
completa que praticamente inviabilizaria fraudes e práticas obscuras
como as noticiadas em referência à CA.
Apesar de ainda encontrar limitações técnicas,
principalmente na ordem de velocidade e eficiência, esse conceito não é
novo, já tendo sido intitulado de “Blockchain Based Ad Networks”,
desenhado especificamente para evitar fraudes digitais ao conferir uma
grande transparência a todas as transações envolvendo conteúdo
publicitário digital. Ou seja, talvez seja possível fomentar o uso e
influenciar o desenho de tecnologias como o blockchain para garantir
transparência com relação ao uso de dados pessoais, em especial, mas não
exclusivamente, para fins de impulsionamento de conteúdo eleitoral, o
que, em última análise, geraria ganhos democráticos e ferramentas para
que a sociedade possa supervisionar a atuação de seus candidatos nas
mais diferentes plataformas digitais.
Em segundo lugar, do mesmo jeito que os escândalos de espionagem revelados por Edward Snowden
ativamente colaboraram para a aprovação de leis de proteção de dados
pessoais, como o Marco Civil da Internet, as violações perpetradas pela
empresa Cambridge Analytica podem levar a uma nova conjuntura política e
um novo momento de discussões, no Brasil, nos EUA e em vários outros
países, sobre a necessidade de leis robustas que assegurem direitos e
liberdades fundamentais em um contexto que os dados pessoais são a
representação eletrônica de um indivíduo.
No Brasil, há anos se discute uma lei geral de
proteção de dados pessoais com eficácia ampla, multissetorial e
transversal. Nesse contexto de discussões em prol de regras mais
adequadas para garantir a privacidade dos cidadãos, o cenário europeu
merece destaque. Em maio, entrará em vigor na Europa a nova Regulação
Europeia de Proteção de Dados, conhecida como GDPR. Por muitos
considerada uma norma que consegue equalizar interesses econômicos e
comerciais com a proteção a direitos fundamentais, a sua eficácia
extraterritorial que ultrapassa os limites geográficos do velho
continente, tem levado a que seja classificada como o padrão mais
elevado na proteção de dados pessoais. Independente de se ela é ou não o
meio mais adequado para se regular o uso dos dados pessoais, a sua
influência internacional é inquestionável. Já nos EUA, prevalece a ideia
de que cabe ao indivíduo negociar diretamente com o provedor de serviço
os limites no uso dos seus dados. Essa negociação acontece, quase que
na totalidade das vezes, por meio de instrumentos unilaterais como as
Políticas de Privacidade, documento raramente lido ou compreendido por
aqueles que cedem os seus dados para que possam ter acesso às mais
diversas funcionalidades oferecidas pelas empresas de Internet. As
práticas da CA deixam claro que esta dinâmica e autonomia, por si, podem
não ser suficientes para assegurar os direitos dos indivíduos, muito
menos garantir o efetivo funcionamento do Estado Democrático de Direito.
estão entre as mais preocupantes dentre os reguladores e aqueles que
discutem os rumos de leis como esta. Por isso, como afirmado por Eduardo Ustaran,
assim como Snowden teve uma clara influência nas leis sobre
transferência internacional de dados, o caso Cambridge Analytica pode
ter como desfecho uma profusão de novos limites no uso de dados pelos
mais diferentes modelos de negócio, por meio de novas formas de
regulação, no Brasil, nos EUA e no mundo.
Renato Leite Monteiro é doutorando em Filosofia do Direito pela USP e professor de Direito Digital da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Fonte: El País
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