Quando carro ou geladeira valem mais que as vidas sacrificadas em Brumadinho
Enquanto
a vida de um só ser humano valer menos que um eletrodoméstico,
continuaremos sem esperança de redenção no túnel sem saída da barbárie
Juan Arias
Aos que acompanhamos a tragédia da represa
da mineradora Vale que desmoronou em Minas Gerais, e o número de
vítimas mortais que aumenta a cada momento, só resta a indignação, a dor
e a solidariedade com as famílias enlutadas. Indignação porque a
catástrofe poderia ser evitada, como indicam todos os especialistas, e
dor e solidariedade com as famílias em pranto.
Ficou evidente, apenas três anos depois do crime de Mariana,
cujas feridas continuam abertas, que mais uma vez o lucro e a corrupção
prevaleceram sobre a preocupação quanto a possíveis vítimas. E isso
gera indignação e desespero para aqueles que se viram afetados e se
sentem imponentes frente a esses gigantes complexos mineradores
protegidos pela impunidade.
Em meio ao luto vivido pelo Brasil e ao sentimento de
impotência que sacode as pessoas normais, a grande solidariedade das
pessoas com as famílias atingidas serviu como único sopro de esperança
de que a consciência solidária dos brasileiros não morreu e continua
palpitando frente à dor causada pela avareza do capitalismo selvagem.
Em meus muitos anos de jornalismo, estou acostumado a
relatar e analisar muitas outras catástrofes mundo afora, mas mesmo
assim houve uma declaração de um político mineiro que me causou um
mal-estar difícil de expressar. Eu a li no blog do jornalista, escritor e
agudo polemista Reinaldo Azevedo. É um tuíte de Evandro Negrão Jr.,
vice-presidente do partido Novo no Estado de Minas, cenário da tragédia.
Precisei ler várias vezes o texto, que Azevedo qualificou como
“latrina”, para me convencer de que não estava alucinando.
Nele, o político, correligionário do atual governador de Minas, Romeu Zema,
escreve que de fato os mortos de Brumadinho dão pena, mas que o
importante é essa maravilhosa empresa que arranca minérios do coração da
terra. Ou será que os brasileiros preferem ficar sem carros e sem
geladeiras em vez de perder um punhado de vidas? E conclui que o
importante é que a empresa retome sua atividade o quanto antes, para
continuar produzindo materiais sem os quais ficaríamos privados de
eletrodomésticos.
E as vítimas? Que a Vale
pague uma multa. O político foi até generoso com os mortos: pede que
seja uma “grande multa”. E a prisão para os possíveis responsáveis? Isso
seria um castigo exagerado para uma empresa tão fantástica que,
conforme escreve, torna o mundo “muito melhor”.
Não, não é uma fake news. Eis o texto literal:
“Lamentável, muito dolorido e MUITO sofrido o desastre de
Brumadinho, mas n/ podemos demonizar a Vale. É uma baita empresa, sem
minério n/ tem carro, avião, nem geladeira e o mundo é muito melhor c/
empresas como ela do q sem. Ela errou, deve pagar 1 grande multa e
voltar a funcionar asap.”
Enquanto a vida de um só ser humano valer menos que um
eletrodoméstico, continuaremos todos apanhados e sem esperança de
redenção no túnel sem saída da barbárie. O texto do político do Novo
é a melhor elegia do capitalismo em estilo puro, para quem o lucro é
seu único bezerro de ouro digno de culto. O resto, o pranto das pessoas
que tiverem que ser sacrificadas em seu altar, são um apêndice, um
parêntese, uma insignificância. Menos que uma geladeira.
Afinal, o que são algumas dezenas de vítimas a mais ou a
menos, em um país com mais de 200 milhões, frente à felicidade de poder
ter nossas casas repletas de eletrodomésticos? Não se trata de condenar o sistema capitalista, sempre melhor que o da Coreia do Norte,
mas sim de fazermos isso convencidos de que uma só vida humana sempre
continuará valendo mais que todo o ferro e o ouro do mundo.
Fonte: El País
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