A enorme (e inadiável) tarefa de regular o capitalismo digital
Uma
década depois do nascimento de plataformas como Airbnb e Uber, as
administrações públicas enfrentam o desafio de dar forma a um fenômeno
destinado a transformar o modelo de produção e as relações trabalhistas
Luis Doncel
Manuel V. Gómez
Madrid

Há poucos dias, os patinetes elétricos voltaram às ruas da capital espanhola. Mas agora é a Prefeitura que decide onde, quanto e como. Os patinetes são apenas um exemplo de como as plataformas digitais, que abrangem um número crescente de setores, podem mudar o panorama das sociedades do século XXI.
Ninguém dúvida que o capitalismo digital tenha chegado para ficar. E que revolucionará a organização do trabalho e o microcosmos empresarial. Em 2015, o Dimmons, grupo de pesquisa da Universidade Aberta da Catalunha sobre a Internet, registrou 32 áreas nas quais a atividade digital já está presente. Dois anos depois, esse número dobrou. Agora, voltou a se multiplicar. Tudo indica que a tendência continua. Uma vez assumida a importância da revolução, a grande tarefa pendente é como ela deve ser regulada. E aqui a grande questão é como abordar um fenômeno cuja capacidade disruptiva era desconhecida até pouco tempo atrás.
"Estamos diante de uma transformação tão profunda como a industrialização", assegura um professor de Direito Administrativo

O eurodeputado socialista Sergio Gutiérrez está ciente da dificuldade de regular a nova realidade digital. Vice-presidente do Comitê de Mercado Interno do Parlamento Europeu, Gutiérrez detecta uma dupla velocidade nas normas que saem de Bruxelas. “Demos um passo de gigantesco na construção de um mercado único digital. Mas estamos atrasados no que diz respeito às condições sociais e trabalhistas de trabalhadores e consumidores”, reconhece. Do âmbito europeu para o local. Inés Sabanés, responsável por Mobilidade na administração municipal de Madri, admite a assimetria entre poderes públicos necessariamente lentos para reagir e plataformas muito rápidas para se estabelecer sob o rótulo de “economia colaborativa”. “Os Governos têm de ordenar a forma como essas empresas impactam o espaço público”, acrescenta Sabanés.
Eurodeputado alerta quanto ao atraso na legislação sobre proteção de trabalhadores e consumidores
Os sinais da mudança digital talvez sejam mais evidentes no mercado trabalhista. Principalmente nas plataformas que atuam como intermediárias na oferta de serviços. Elas facilitam o trabalho por projeto e não por tempo de trabalho. Não é algo novo. As bases para isso já existiam, por conta da terceirização. Mas a simplicidade para encomendar projetos ou dividir tarefas marca uma disrupção para a qual as leis atuais oferecem poucas respostas.
Os rostos visíveis deste debate têm sido os entregadores − ou riders, como as empresas preferem chamá-los − de Deliveroo, Glovo e similares. Mas essas plataformas são só a ponta do iceberg. A lista é muito longa: Cuidum para os cuidadores de idosos em domicílio; Sharing Academy para as aulas particulares; Amazon Mechanical Turk para projetos que não exigem alta qualificação; Upwork para autônomos especializados em qualquer parte do mundo...
A novidade não está nas tarefas, mas na forma como a plataforma muda a organização do trabalho e como põe contra a parede uma regulação pensada para outro modelo de produção. E neste ponto está aberta a batalha para decidir se aqueles que prestam seus serviços são assalariados ou autônomos. Adrián Todolí, professor de Direito Trabalhista na Universidade de Valência, não tem dúvida: “É uma relação trabalhista especial, mas são assalariados. O fato de que os trabalhadores possam escolher horário é muito relevante, mas não determinante”. Todolí considera que abrir a porta para que esses trabalhadores sejam considerados autônomos acarreta o risco de perda de direitos.
Essa opinião não é compartilhada por Moreno, que acredita que são, sim, autônomos, nem Martín Carretero, que propõe um enquadramento jurídico completamente novo. “As plataformas não são fornecedoras de serviços, e sim intermediárias entre consumidores e fornecedores. O que define a força dessas plataformas é o poder de mercado. Atuam quase como um monopólio frente ao trabalhador. Se um gigante da nova economia decide unilateralmente baixar os valores que paga, que capacidade de resposta resta aos trabalhadores? Nenhuma. Estão totalmente desprotegidos”, assinala o economista.
Luz Rodríguez, professora de Direito do Trabalho, acredita que esse debate não resolve a situação precária em que nadam esses trabalhadores estão. “Nem os assalariados estão no céu, nem os autônomos estão no inferno. Há situações de vulnerabilidade nos dois âmbitos”, afirma. Essa estudiosa do impacto da digitalização no trabalho defende uma posição adotada agora pela Organização Internacional do Trabalho (OIT): criar um conjunto mínimo comum de direitos para todos os trabalhadores, independentemente de serem assalariados ou autônomos.
A solução legal tampouco eliminará o risco para o qual alertou o jurista Alain Supiot: “A uberização poderia exacerbar a desumanização do trabalho gerada pelo taylorismo [divisão de tarefas na produção]”, escreveu o pensador francês.
As plataformas que são realmente colaborativas
O rótulo de economia colaborativa foi colocado em plataformas que
permitem compartilhar o carro quando viajamos sozinhos, oferecer
alojamento no quarto livre do nosso apartamento ou vender objetos dos
quais não precisamos mais. Mas esse conceito, que traz a conotação
positiva inerente à ideia de compartilhar, foi manchado pelos efeitos
nocivos − gentrificação, aumento dos aluguéis, deterioração das
condições de trabalho − de gigantes como Airbnb ou Deliveroo, e por seus
faturamentos milionários. A economia colaborativa, dizem os críticos,
perdeu a inocência.
A pesquisadora Mayo Fuster lembra, no entanto, que o primeiro modelo que apareceu na Internet era verdadeiramente colaborativo. E que essa ideia se prolongou até a década de 2000, quando começou a predominar o modelo que ela chama de “grupos extrativistas”. “Como resultado da crise de 2008, o capital de risco que estava em torno do mercado imobiliário encontrou um novo foco: o Vale do Silício. Como o Uber, financiada pelo Goldman Sachs. Esses grupos investiram muito dinheiro para se apresentar como organizações de economia colaborativa”, assinala. “Agora estamos em outro momento. Já ficou bem claro quais são colaborativas e quais não são”, acrescenta Mayo Fuster, diretora do grupo Dimmons da Universidade Aberta da Catalunha.
Diante do desejo de fazer negócio com um clique, há plataformas muito menos conhecidas, mas que se enquadram totalmente no modelo colaborativo. É o caso da belga Smart, com tem 85.000 membros e está presente em nove países da União Europeia. Ela oferece “respostas, conselhos e ferramentas administrativas, jurídicas, fiscais e financeiras para simplificar a atividade de trabalhadores autônomos”, segundo seu site. Também se enquadra nessa filosofia a alemã Fairmondo. Trata-se de um lugar para trocar itens de todo tipo, que pretende fugir dos círculos dos gigantes do comércio online. “Não é nada irrisório. Nosso lugar de troca já tem mais de dois milhões de artigos só na categoria de livros”, afirmam os responsáveis, que já reúnem mais de 2.000 pequenos comerciantes em sua rede. Na Catalunha nasceu a cooperativa de consumo sem fins lucrativos Som Mobilitat, que oferece serviços e produtos de mobilidade para acelerar a transição para uma economia sustentável.
Em novembro, 42 cidades do mundo − de Amsterdã a Montreal, passando por Seul, Madri, Barcelona, Lisboa e São Paulo − assinaram a Declaração de Princípios e Compromissos das Cidades Colaborativas. Nesse documento conjunto, reivindicam a soberania das cidades e se comprometiam a atuar como uma frente comum para negociar com as grandes plataformas digitais.
Fonte: El País
A pesquisadora Mayo Fuster lembra, no entanto, que o primeiro modelo que apareceu na Internet era verdadeiramente colaborativo. E que essa ideia se prolongou até a década de 2000, quando começou a predominar o modelo que ela chama de “grupos extrativistas”. “Como resultado da crise de 2008, o capital de risco que estava em torno do mercado imobiliário encontrou um novo foco: o Vale do Silício. Como o Uber, financiada pelo Goldman Sachs. Esses grupos investiram muito dinheiro para se apresentar como organizações de economia colaborativa”, assinala. “Agora estamos em outro momento. Já ficou bem claro quais são colaborativas e quais não são”, acrescenta Mayo Fuster, diretora do grupo Dimmons da Universidade Aberta da Catalunha.
Diante do desejo de fazer negócio com um clique, há plataformas muito menos conhecidas, mas que se enquadram totalmente no modelo colaborativo. É o caso da belga Smart, com tem 85.000 membros e está presente em nove países da União Europeia. Ela oferece “respostas, conselhos e ferramentas administrativas, jurídicas, fiscais e financeiras para simplificar a atividade de trabalhadores autônomos”, segundo seu site. Também se enquadra nessa filosofia a alemã Fairmondo. Trata-se de um lugar para trocar itens de todo tipo, que pretende fugir dos círculos dos gigantes do comércio online. “Não é nada irrisório. Nosso lugar de troca já tem mais de dois milhões de artigos só na categoria de livros”, afirmam os responsáveis, que já reúnem mais de 2.000 pequenos comerciantes em sua rede. Na Catalunha nasceu a cooperativa de consumo sem fins lucrativos Som Mobilitat, que oferece serviços e produtos de mobilidade para acelerar a transição para uma economia sustentável.
Em novembro, 42 cidades do mundo − de Amsterdã a Montreal, passando por Seul, Madri, Barcelona, Lisboa e São Paulo − assinaram a Declaração de Princípios e Compromissos das Cidades Colaborativas. Nesse documento conjunto, reivindicam a soberania das cidades e se comprometiam a atuar como uma frente comum para negociar com as grandes plataformas digitais.
Fonte: El País
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