602 cientistas pedem que Europa condicione importações do Brasil a cumprimento de compromissos ambientais
602 cientistas pedem que Europa condicione importações do Brasil a cumprimento de compromissos ambientais
A edição de
sexta-feira (26) da revista Science traz uma carta assinada por 602
cientistas de instituições europeias pedindo para que a União Europeia
(UE), segundo maior parceiro comercial do Brasil, condicione a compra de
insumos brasileiros ao cumprimento de compromissos ambientais.
Em
linhas gerais, o documento faz três recomendações para que os europeus
continuem consumindo produtos brasileiros, todas baseadas em princípios
de sustentabilidade. Pede que sejam respeitados os direitos humanos, que
o rastreamento da origem dos produtos seja aperfeiçoado e que seja
implementado um processo participativo que ateste a preocupação
ambiental da produção - com a inclusão de cientistas, formuladores de
políticas públicas, comunidades locais e povos indígenas. O grupo de cientistas tem representantes de todos os 28 países-membros da UE. O teor da carta ecoa preocupações da Comissão Europeia - órgão politicamente independente que defende os interesses do conjunto de países do bloco político-econômico - que há cerca de quatro anos vem estudando como suas relações comerciais impactam o clima mundial.
Pesquisador de questões de uso do solo, políticas de mitigação climática, combate ao desmatamento e cadeias produtivas, o brasileiro Tiago Reis, da Universidade Católica de Louvain, é um dos autores da carta.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele afirmou que a publicação do texto tem como objetivo mostrar às instituições europeias que a comunidade científica entende a questão como "prioritária e extremamente relevante".
O artigo foi divulgado nesta quinta-feira. Procurado pela reportagem da BBC News Brasil, o Ministério do Meio Ambiente ainda não respondeu ao pedido de entrevista sobre o tema.
Sustentabilidade e direitos humanos
"Exortamos
a União Europeia a fazer negociações comerciais com o Brasil sob as
condições: a defesa da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos
dos povos indígenas; a melhora dos procedimentos para rastrear
commodities no que concerne ao desmatamento e aos conflitos indígenas; e
a consulta e obtenção do consentimento de povos indígenas e comunidades
locais para definir estrita, social e ambientalmente os critérios para
as commodities negociadas", diz a carta veiculada no periódico
científico.A carta ressalta que a UE comprou mais de 3 bilhões de euros de ferro do Brasil em 2017 - "a despeito de perigosos padrões de segurança e do extenso desmatamento impulsionado pela mineração" - e, em 2011, importou carne bovina de pecuária brasileira associada a um desmatamento de "mais de 300 campos de futebol por dia".
Segundo dados do Ministério da Economia, as exportações para a UE representaram 17,56% do total do Brasil em 2018 - um total de mais de US$ 42 bilhões, com superávit de US$ 7,3 bilhões. A exportação de carne responde por cerca de US$ 500 milhões deste total, minério de ferro soma quase US$ 2,9 bilhões e cobre, US$ 1,5 bilhão.
De acordo com dados divulgados em novembro pelo ministérios do Meio Ambiente e da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, a Amazônia enfrenta índices recordes de desmatamento.
Os sistemas do Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Amazônia Legal por Satélite (Prodes) registraram um aumento de 13,7% do desmatamento em relação aos 12 meses anteriores - o maior número registrado em dez anos. Isso significa que, no período, foram suprimidos 7.900 quilômetros quadrados de floresta amazônica, o equivalente a mais de cinco vezes a área do município de São Paulo.
A principal vilã é a pecuária. Estudo realizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em 2016 apontou que 80% do desmatamento do Brasil se deve à conversão de áreas florestais em pastagens.
Atividades de mineração respondem por 7% dos tais danos ambientais.
Principal autora do texto, a bióloga especialista em conservação ambiental Laura Kehoe, pesquisadora da Universidade de Oxford, acredita que, como forte parceria comercial, a Europa é corresponsável pelo desmatamento brasileiro.
"Queremos que a União Europeia pare de 'importar o desmatamento' e se torne um líder mundial em comércio sustentável", disse ela. "Nós protegemos florestas e direitos humanos 'em casa', por que temos regras diferentes para nossas importações?"
"É crucial que a União Europeia defina critérios para o comércio sustentável com seus principais parceiros, inclusive as partes mais afetadas, neste caso as comunidades locais brasileiras", afirmou a bióloga conservacionista Malika Virah-Sawmy, pesquisadora da Universidade Humboldt de Berlim.
A carta dos cientistas apresenta preocupações, mas a aplicação dos tais compromissos como condições para tratativas comerciais depende de regras a serem criadas pela Comissão Europeia. Se o órgão acatar as sugestões, será preciso definir de que maneira o Brasil - e outros parceiros comerciais da UE - precisaram criar organismos e estabelecer as métricas para o cumprimento das exigências.
Medidas do governo Bolsonaro
De
acordo com o brasileiro Tiago Reis, foram dois meses de articulação
entre os cientistas europeus para que a carta fosse consolidada e os
signatários, reunidos. "Criamos o texto acompanhando a evolução do novo governo brasileiro. Estávamos preocupados com as promessas de campanha, mas quando essas promessas passaram a ser concretizadas, com edição de decretos, decidimos que precisávamos fazer algo", disse ele.
"Existe, hoje, um discurso no Brasil que promove a invasão de terras protegidas e o desmatamento. Isso gerou sinais de alerta na comunidade científica internacional."
A carta publicada pela Science ainda afirma que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) trabalha "para desmantelar as políticas anti-desmatamento" e ameaça "direitos indígenas e áreas naturais". Além de ser assinada pelos 602 cientistas europeus, a carta tem o apoio de duas entidades brasileiras, que juntas representam 300 povos indígenas: a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Logo no dia 2 de janeiro, primeiro dia útil do mandato, Bolsonaro publicou decretos transferindo órgãos de controle ambiental para outras pastas, reduzindo a atuação do Ministério do Meio Ambiente.
O Serviço Florestal Brasileiro, por exemplo, foi realocado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - pasta comandada por Tereza Cristina, ligada à bancada ruralista. Outros três órgãos foram cedidos para o Ministério do Desenvolvimento Regional.
A incumbência de demarcar terras índigenas, antes sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), também foi transferida para o Ministério da Agricultura. A própria Funai foi remanejada. Antes vinculada ao Ministério da Justiça, acabou subordinada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
Mais recentemente, funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) têm sido alvo de exonerações.
Na semana passada, o Ibama arquivou processos contra a produção de soja em áreas protegidas em Santa Catarina. E o próprio presidente Bolsonaro, via redes sociais, desautorizou no início deste mês operação em andamento contra a exploração ilegal de madeira em Rondônia.
Fonte: BBC
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