O ‘Mary Poppins’ da matemática que se instalava na casa dos colegas para resolver problemas
A babá do guarda-chuva visitava as casas onde havia um problema e ia embora quando conseguia solucioná-lo
J. M. Mulet
Quem já foi criança terá visto Mary Poppins. E, se além disso foi pai ou mãe, provavelmente a tenha visto mais de 20 vezes. Portanto, certamente se lembra de que a primeira música entoada por Bert (Dick Van Dyke) no filme diz: “Ventos do leste vêm me dizer/Que alguma coisa vai acontecer.” E dessa forma nos introduz no peculiar sistema de trabalho de Mary Poppins, uma babá que visitava casas onde havia problemas sem que ninguém a chamasse – e que ia embora após solucioná-los. A única condição era que a direção do vento fosse propícia, já que Poppins voava pendurada num guarda-chuva, mantendo interessantes conversas com o cabo na forma de papagaio. Esse método pode parecer original e fruto da imaginação da escritora australiana P. L. Travers (pseudônimo de Helen Lyndon Goff), mas, como costuma acontecer, a realidade supera a ficção. Houve uma pessoa que utilizou esse mesmo método durante sua longa carreira, mas com uma peculiaridade: não era babá, e sim matemático.
Erdös nunca teve casa própria, família nem praticamente bens materiais. Doava seu salário de professor e os prêmios que ganhava por solucionar problemas matemáticos a quem resolvesse questões que ele mesmo propunha. Como então vivia? Ora, como Mary Poppins. Comparecia a conferências matemáticas e escutava em que trabalhavam seus colegas. Quando alguém estava com algum problema que lhe interessava, ia até a casa da pessoa e ficava lá trabalhando no problema. Quando o resolvia, buscava outro colega que o motivasse e se mudava à casa dele. A vantagem era que não dependia da direção do vento, e a desvantagem era que ia de avião, não num guarda-chuva mágico. Com esse método, escreveu mais de 1.500 artigos científicos ao longo de sua vida, sendo considerado o matemático mais produtivo depois de Leonhard Euler, suíço do século XVIII, embora isso seja motivo de controvérsia. Erdös escreveu mais artigos, e Euler mais páginas. Com sua produtividade e brilhantismo, é lógico que ninguém o acusasse de folgado. Qualquer matemático do mundo adoraria alojar Erdös em sua casa, já que ele era garantia de interessantíssimas discussões, resolução de um problema importante e publicação de artigos de pesquisa. Não por acaso, ao longo da vida ele publicou com mais de 500 coautores em campos tão distintos quanto probabilidade, teoria dos grafos, conjuntos e análise combinatória. Morreu em plena atividade, durante uma conferência matemática em Varsóvia, aos 83 anos. Dizem que um matemático é alguém que transforma café em teoremas, e as pessoas que o conheceram afirmam que Erdös o bebia em doses cavalares, certamente na mesma proporção que Mary Poppins cantava.
Entre os cientistas, e em particular os matemáticos, não faltam biografias peculiares. O desapego dos bens materiais não é algo infrequente. Um caso mais recente seria o do brilhante matemático russo Grigori Perelman, que foi capaz de resolver a conjectura de Poincaré, um dos problemas de geometria mais complexos que existem. Perelman abriu mão da medalha Fields (uma das máximas distinções que um matemático pode almejar) e ao milhão de dólares do prêmio à resolução de um dos problemas do milênio. Ele disse que não queria acabar sendo exposto como um animal de zoológico. Hoje, após ter deixado a matemática, continua morando com a mãe num humilde apartamento em São Petersburgo.
Fonte: El País
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