O acidente de trabalho que melhorou a visão de milhões de pessoas

O acidente de trabalho que melhorou a visão de milhões de pessoas


O francês Gérard Mourou, Nobel de Física de 2018, recorda um percalço em seu laboratório que abriu as portas às cirurgias oculares a laser
Gerard Mourou
Gérard Mourou, no Instituto Francês de Madri
Certo dia de 1992, um jovem chinês sofreu o que provavelmente seja o único acidente de trabalho que acabou beneficiando milhões de pessoas em todo o mundo. O estudante Detao Du alinhava os lasers de uma máquina experimental no seu laboratório quando a potente luz entrou pelo seu olho. Seu chefe, o francês Gérard Mourou, acompanhou-o correndo ao hospital. O médico do pronto-socorro examinou imediatamente a retina ferida e, assombrado, perguntou que tipo de laser era aquele. Detao explicou: era uma nova técnica para gerar pulsos ultracurtos de alta intensidade. “Por que você me perguntou isso?”, quis saber o paciente. “Porque o corte é perfeito”, respondeu o médico.
O cientista Detao Du
O cientista Detao Du
Menos de três décadas depois, a técnica, conhecida como amplificação de pulso trinado, é uma ferramenta-padrão em oftalmologia para moldar a córnea e tratar a miopia, a hipermetropia e o astigmatismo. “Acredito que já tenha sido utilizado em 20 milhões de olhos”, afirma Mourou. Em meados da década de 1980, o físico francês propôs a uma de suas alunas, Donna Strickland, então com 25 anos, que fizesse sua tese de doutorado desenvolvendo esta ideia de lasers de alta intensidade. “A ideia lhe parecia muito simples. Estava preocupada de que não fosse suficiente para uma tese”, recorda agora o investigador, com ironia. No ano passado, os dois ganharam o Prêmio Nobel de Física por suas "revolucionárias invenções”, conforme destacou o júri.
Mourou nasceu em 22 de junho de 1944 em Albertville, um povoado dos Alpes franceses, em plena Segunda Guerra Mundial. Duas semanas antes, no chamado Dia D, os Aliados haviam desembarcado na Normandia. “Não me lembro de nada”, brinca o investigador. Seu pai era um maquis, um membro da guerrilha francesa de resistência à ocupação nazista, conforme relata Mourou, de passagem por Madri para proferir uma conferência no Instituto Francês da capital espanhola. Quando o pequeno Gérard nasceu, seu pai estava escondido “na montanha”.
O Prêmio Nobel investiga agora novas aplicações para seu laser, tão potente e tão rápido que o francês o compara a “golpes de caratê”, conforme explica dando vários socos na mesa. Em 1991, Mourou fundou na Universidade do Michigan (EUA) o Centro para a Ciência Óptica Ultrarrápida, onde desenvolveu a técnica para as cirurgias oculares e onde foi construído o laser mais potente do mundo, batizado de Hércules. Seu feixe é mais intenso que o de uma hipotética lupa gigante que focasse toda a luz do Sol sobre um grão de areia na Terra, conforme ilustra a Universidade de Michigan.
Mourou compara a intensidade de seu laser a segurar 10 milhões de Torres Eiffel na ponta de um dedo
Mourou também convenceu a Comissão Europeia e a vários países da UE a investirem 850 milhões de euros (3,28 bilhões de reais) no projeto ELI, um conjunto de instalações de lasers ultraintensos na República Tcheca, Hungria e Romênia. Em 2013, o cientista francês protagonizou um polêmico vídeo em que aparecia dançando reggae no laboratório junto com seus jovens alunos da Escola Politécnica de Paris, incluindo duas moças que, aos risos, tiravam quase toda a roupa. “A ideia era animar as mulheres a fazerem física, dizer que a física é divertida, mas acho que saiu do controle. Não gosto daquele vídeo”, diz agora. A letra da canção explicava os objetivos do projeto europeu: “Tratar resíduos nucleares, entender o universo e, atenção, inclusive curar o câncer”.
Alguns hospitais já utilizam a chamada terapia de prótons para tratar tumores, sobretudo de cérebro, olho e pulmão. A técnica mata as células cancerosas, mas, diferentemente de outros tipos de radioterapia que usam raios-X, esta ferramenta usa feixes de prótons, partículas que se encontram no núcleo dos átomos. “Atualmente é possível fazer isso, mas exige máquinas muito grandes, os aceleradores convencionais. Com nosso laser é possível fazer máquinas muito mais compactas”, prognostica.
O físico quer usar seu laser para facilitar a terapia de prótons no tratamento de tumores
Mourou conta em suas conferências que a intensidade de seus lasers é equivalente a sustentar 10 milhões de Torres Eiffel na ponta de um dedo. Durante sua viagem à Espanha, o ganhador do Nobel aproveitou para visitar o moderno Centro de Lasers Pulsados de Salamanca, que se baseia na sua tecnologia, e destacou as futuras aplicações médicas desse bisturi de luz.
Outra das metas de Mourou é utilizar esses feixes ultraintensos para eliminar os perigosos resíduos das usinas nucleares, que atualmente são armazenados em silos de alta segurança. “Há quatro átomos que são realmente maus, porque podem liberar radioatividade durante centenas de milhares de anos: netúnio, cúrio, amerício e plutônio. O netúnio tem uma meia-vida de 2,1 milhões de anos. Com nosso laser podemos acelerar partículas para fissionar os núcleos desses átomos e obter outros com uma meia-vida muitíssimo menor, com uma meia-vida inclusive de minutos”, detalha entusiasmado.
“Funciona, mas é preciso fazer funcionar de maneira comercial”, acrescenta. Se tiver sucesso, desta vez os beneficiados não serão apenas alguns poucos milhões de pessoas com problemas de visão, e sim toda a humanidade. “Sinto-me bem, acredito que tenho feito algo significativo para a sociedade”, conclui.

Fonte: El País

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