O Brasil por trás do cartaz de uma manifestação
João
da Silva foi fotografado em ato pela educação, no Rio, com um cartaz
que mostrava a realidade de muitos jovens da periferia: foi o primeiro
da família a ingressar em uma universidade pública
Beatriz Mota
Rio de Janeiro
João da Silva se pôs de pé às 5h, quando o sol ainda nem
havia surgido por trás do Monte das Oliveiras —um morro anônimo
apelidado assim por Francisca, sua avó, e que fica colado ao condomínio
popular em que vivem. Seguiu a rotina: banho, cabelo na régua, visual na beca, pausa para a selfie no espelho do banheiro, preparo da marmita e a benção da matriarca antes de iniciar o rolê. No bairro de Senador Vasconcelos, zona Oeste do Rio de Janeiro,
pegou um 397, ônibus que leva cerca de duas horas em direção ao centro
da cidade. João trabalha de segunda a sábado como atendente de
telemarketing, até as 15h. Em dias úteis, seu próximo destino estaria no
outro lado da Baía de Guanabara, na cidade de Niterói, na Universidade
Federal Fluminense (UFF), onde cursa a graduação de história. As aulas
vão até as 22h e o universitário raramente volta à casa da avó antes da
0h. Mas era quarta-feira, 15 de maio de 2019, e neste dia a faculdade
aderira à greve contra a redução do Orçamento da educação
anunciada pelo MEC. Ao lado de uma amiga, o jovem de 20 anos escreveu
um cartaz de protesto e foi à manifestação, onde esbarrou com esta
jornalista, que o fotografou.
A imagem do rapaz, olhar firme, mensagem em riste —"Sou o primeiro da minha família a entrar numa universidade pública
e vou lutar para não ser o último"—, foi publicada nas redes sociais,
curtida e compartilhada centenas de milhares de vezes, gerando uma onda
de depoimentos com trajetórias semelhantes a dele. "Esta foto me
representa tanto, me fez vir às lágrimas, ao lembrar que a minha mãe ao
chegar da roça exaurida dizia que a única coisa que ela poderia deixar
era o estudo, e que era pra eu estudar, porque o peso da caneta era
menor do que o da enxada”, escreveu o usuário Delton Felipe no Facebook.
"Eu fui a primeira da minha família a ter o direito de estudar até o
final. Meus pais, avós, não tiveram essa oportunidade, em um tempo que
precisaram largar os estudos para trabalhar e que o vestibular era algo
quase impossível de se transpor", disse Ruth Tamires na mesma rede
social.
Como João, preto, pobre e primeiro membro da família Silva a entrar na universidade, há muitos. Os dados mais recentes do Censo do Ensino Superior,
elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (Inep), em 2016/2017, exibem o crescimento de
matriculados na educação superior no Brasil: de 2002 a 2017, o número de
alunos passou de 3,5 para mais de 8 milhões. Seis em cada dez
instituições de ensino superior (1.481 das 2.448) utilizam o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) como ferramenta de seleção para os
cursos de graduação. O exame unificado, que completou 20 anos em 2018,
detém o posto de segundo maior vestibular público do mundo (o primeiro é
o Gaoka, na China) e é apontado por especialistas como um dos motores
da democratização da educação superior no Brasil.
O peso do sonho de gerações
O Enem também foi a porta de entrada de João, que passou para a
graduação de história, na UFF, em sua primeira experiência com o exame,
aos 17 anos. Ele estudou por cursos online na casa de uma amiga, pois
não tinha internet onde mora, e sob o peso de realizar um sonho que era
de uma família inteira. "Quando ele foi fazer o Enem, me ligou falando:
'Vovó, eu acho que eu não vou passar. Se eu não fizer faculdade, a
senhora fica triste?' Eu disse que sim, ia ficar muito triste. E ele me
deu essa alegria, passou com boas notas", conta Francisca Gomes, 75
anos.
Francisca é a chefe de uma família que é o retrato de um
Brasil. Nascida no Recife, Pernambuco, onde deu à luz suas cinco filhas,
veio morar no Rio de Janeiro em 1995 apostando que, na cidade, suas
meninas poderiam ter um futuro melhor do que o seu. E quem sabe até
ingressar numa universidade. Viúva, a vendedora de cosméticos criou
sozinha as cinco mulheres, entre elas Wanderlucia da Silva, mãe de João.
Elas moraram de aluguel por dez anos em Guadalupe, Zona Norte do Rio.
Em 2005, se mudaram para o condomínio da Senador Vasconcelos, em casa
própria que adquiriram através de um financiamento incentivado por um
programa de habitação federal (à época chamado PAR, anterior ao Minha Casa, Minha Vida).
Nenhuma das filhas de Francisca conseguiu o diploma, 24
anos depois. Tateando numa cidade nova e desafiadora, as moças tiveram
que dedicar todo tempo ao trabalho, para ajudar a mãe. Foi trabalhando
como recepcionista num hotel da Rua do Lavradio, no Centro, que
Wanderlucia conheceu o pai de João, e engravidou. "Ele olhou o teste de
gravidez e disse: 'Mais um problema'. Eu respondi: 'Meu filho não será
um problema, ao contrário'. Eu não tive uma criação de diálogo, mas com
João sempre conversei: 'Não quero que tenha a vida que eu tenho agora.
Filho, eu não cheguei a fazer faculdade, mas eu acredito em você. Foca
no seu estudo. Porque a sociedade não perdoa'. Nós somos de família
nordestina, pobre, negra… Não dá pra ficar sem estudo aqui. A sociedade
exige que gente como nós apresente a ela a nossa capacidade para
conseguir adquirir respeito", relata Wanderlucia.
Mãe solteira, ela teve que deixar o filho com a
avó, Francisca, durante toda a primeira infância dele, enquanto
trabalhava. Foi neste período que João adoeceu, ficou um mês internado e
quase morreu de meningite bacteriana. Com seis anos, ele foi morar com a
mãe e o seu novo companheiro em Santa Cruz, na Zona Oeste. De lá, só
saiu após entrar na faculdade, para a casa da avó, diminuindo em 30
minutos a distância do centro. João fez todo o ensino fundamental nas
escolas municipais Luís Caetano de Oliveira (Amarelinho) e Eduardo
Rabelo, em Santa Cruz. A mãe se esforçou para pagar um colégio
particular para ele por alguns anos. Desempregada e atuando como
ambulante, logo teve que procurar uma vaga para o menino no ensino
público. O ensino médio João cursou com ensino técnico (em
telecomunicações) no colégio estadual Hebe Camargo, em Pedra de
Guaratiba. Para conseguir a vaga, estudou em lanhouses, montou grupos de
leitura com os amigos e contou com a ajuda de alguns professores, em
aulas gratuitas de preparação para as provas. No pré-vestibular, também
organizou seu tempo entre materiais encontrados na internet e a troca
com amigos. Relembrando sua história, João se considera em "lugar de
privilégio".
"Mesmo estando na escola das 7h às 17h, eu tinha tempo para
estudar quando chegava em casa. Mas e o jovem que tem que trabalhar,
antes mesmo de se formar no ensino médio, porque precisa contribuir
financeiramente em casa? E as pessoas mais velhas, que precisam
sustentar a família? O ingresso na universidade é ainda extremamente
desigual", questiona João, que também recebe o suporte das tias,
redimidas hoje pela conquista do rapaz.
"Queremos muito vê-lo vencedor, porque a gente ainda
carrega o insucesso, a frustração, de não termos conseguido cursar
universidade. Viemos para o Rio com intenção de evoluir, mas tivemos que
escolher: ou trabalha ou estuda. Por isso, a gente dá todo apoio e
retaguarda a ele", emociona-se Wanderlene da Silva, 49 anos, que é
pastora evangélica. A tia de João ainda sonha em ter um diploma, mas,
trabalhando como assistente administrativa em Saquarema, cidade na
Região dos Lagos, não tem condições de pagar uma universidade, nem tempo
de se preparar para a concorrência acentuada do ensino superior
público.
Para além da questão do acesso, a manutenção do estudante
numa universidade ainda é um desafio na efetivação da democratização do
ensino superior. Isso porque, dos mais de 8 milhões de alunos
matriculados, de acordo com o Censo do Ensino Superior, apenas 24,68%
(pouco mais de 2 milhões) estudam em universidades públicas. Os outros
75,31% (6.241.307 milhões) estão em universidades privadas. O mesmo
indício surge no perfil das instituições: das 2.448 contabilizadas hoje,
296 são públicas e 2.152, privadas. Segundo o Censo, apenas 37,2% dos
ingressantes da universidade pegam o diploma, sendo 251.793 no setor
público e 947.976 no privado. A maior parte deles abandona o curso no
meio, provavelmente, por falta de condições financeiras. Mesmo
matriculados em universidades públicas, alunos como João só conseguem se
manter em sala com incentivos financeiros. Pela UFF, o estudante
recebeu, durante um período, uma Bolsa de Acolhimento, destinada a
alunos que apresentam situação de vulnerabilidade socioeconômica. Hoje,
ele mantém transporte e alimentação com o salário recebido no trabalho.
O retrato em preto e branco de João na manifestação trouxe
também à tona a perspectiva de inclusão racial nas universidades. Os
números mostram que, nas últimas décadas, a chance de ter um diploma de
graduação aumentou em quase quatro vezes para a população negra. Segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), depois
de mais de 15 anos desde o início da inserção das cotas, o percentual
de pretos e pardos que concluíram a graduação cresceu de 2,2%, em 2000,
para 9,3% em 2017. O Censo do Ensino Superior, do Inep, mostra que, em
2011, 11% das matrículas em cursos de graduação eram de alunos pretos ou
pardos. Em 2016, o percentual subiu para 30%.
No último domingo, enquanto a família de João recebia a reportagem do EL PAÍS em casa, atos favoráveis às ações do Governo Bolsonaro
e à reforma da Previdência aconteciam por todo o país. No Rio, a
reunião de manifestantes pró-bolsonaro aconteceu na praia de Copacabana.
Também na orla da zona Sul do Rio, na praia de Ipanema, um outro
protesto bem menor mobilizou cariocas contra as políticas públicas de
intervenção e ocupação policial em áreas residenciais. "Parem de nos
Matar", era o lema do protesto contra o assassinato de negros na cidade.
João celebra a oportunidade de ser modelo para futuras
gerações: "Ser notícia é importante para reivindicar que a gente precisa
existir, que a gente precisa viver. Mas também acalentar o coração de
nós, pessoas pretas, de que tem uma galera que está buscando não só se
manter vivo, mas melhorar a nossa existência. Quando uma criança negra
vê que alguém com cabelo na régua, que veio da favela, que fala
e anda do mesmo jeito que ele entrou numa universidade, você está
mostrando pra essa criança que ele também pode e deve entrar lá".
Fonte: El País
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