“A notícia é esta: o Xingu vai morrer”
O
Ministério Público Federal adverte que a maior tragédia amazônica hoje
na região de Altamira é o “ecocídio” da Volta Grande do Xingu
Quando os incêndios na floresta queimaram as telas do planeta, a cidade de Altamira foi ocupada pela imprensa. “O mundo descobriu a Amazônia”,
as pessoas falavam nas ruas, enquanto eram abordadas por uma babel de
línguas. Algumas tinham a esperança de que as atrocidades tantas vezes
denunciadas contra a floresta e os povos da floresta fossem finalmente
vistas. Outras apenas sentiam raiva, porque a volta das operações de
órgãos de governo —enfraquecidos na gestão de Michel Temer e
desidratados até quase a extinção no governo de Jair Bolsonaro—
atrapalhavam temporariamente o lucrativo negócio de comercializar a
floresta. “Onde está o fogo? Onde está o fogo?”, perguntavam os
jornalistas que chegavam de todas as partes ao maior município do
Brasil. Dentro de Altamira, cabem Portugal e Suíça e ainda sobra espaço.
No criminoso Dia do Fogo,
em 10 de agosto, 194 focos subiram neste território. Epicentro dos
conflitos amazônicos, Altamira é redescoberta periodicamente. E, em
seguida, esquecida. Essa é a angústia de quem luta pelo meio ambiente
nesse centro do mundo que é tratado como periferia. As chamas podem se
apagar e, se Jair Bolsonaro não
for impedido de seguir desprotegendo a floresta, voltar a acender e a
queimar ainda mais. Algo aterrador e menos visível, porém, está em
curso: a Volta Grande do Xingu está morrendo.
Esta
era a mensagem que a procuradora da República em Altamira Thais Santi
tentava passar aos jornalistas. Os incêndios são graves e devem ser
denunciados e combatidos, mas é necessário compreender também que um rio
está morrendo. Morrendo. “É ecocídio, e é genocídio”, ela afirma. A
procuradora não exagera. Os fatos são eloquentes, investigados e
mensurados pelos melhores cientistas da área do Brasil, e também por
documentos oficiais. Na história recente da Amazônia, a grande causadora
e reprodutora de violências na região do Médio Xingu, onde está a
cidade de Altamira, foi e segue sendo a Usina Hidrelétrica de Belo
Monte. Muito pouco acontece na cidade que não tenha o DNA da Norte
Energia S. A., a empresa concessionária da barragem. Esse DNA está
marcado na agonia da Volta Grande do Xingu, uma região belíssima de 100
quilômetros onde vivem os povos Juruna e Arara, assim como população
ribeirinha e espécies endêmicas de peixes. É também nesta região que,
nos últimos anos, outra gigante, a mineradora canadense Belo Sun,
pressiona a população local e assedia políticos de Belém para obter
autorização para explorar aquela que seria a maior mina de ouro a céu
aberto do Brasil – e também o sepultamento oficial da Volta Grande
embaixo de toneladas de rejeitos tóxicos.MPF afirma que Belo Monte é inviável
No
final de agosto, Thais Santi e outros 23 procuradores, incluindo
coordenadores de câmaras, assinaram uma recomendação para o Instituto
Nacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
afirmando que o hidrograma – a administração da água pela usina – deve
ser suspenso e revisado. Caso isso não aconteça, o Ministério Público
Federal entrará com uma ação judicial. Na prática, o que o documento
demonstra e afirma é o que já se dizia e escrevia antes de Belo Monte
ser construída: preservando as condições mínimas para a vida de
indígenas e ribeirinhos e para a vida das outras espécies, numa das
regiões mais biodiversas da Amazônia, e preservando o Xingu, um dos mais
magníficos afluentes do Amazonas, do qual depende a vida de dezenas de
povos originários, Belo Monte é economicamente inviável.
Esta não é nenhuma novidade. Em 2011, publiquei uma entrevista na Revista Época
com Celio Bermann, professor da Universidade de São Paulo. Especialista
na área energética, ele também havia trabalhado no Ministério de Minas e
Energia com Dilma Rousseff no início do primeiro mandato de Lula (PT). Bermann dizia com todas as letras que Belo Monte
seria construída mais para gerar propina, menos para gerar energia. E
afirmava que, para gerar energia, a usina era economicamente inviável. A
entrevista gerou respostas e pressões de vários protagonistas, como o
então senador José Sarney (PMDB), uma das figuras mas influentes do
setor energético por décadas, em diferentes governos.
Qual é o problema político com Belo Monte, acentuado num país polarizado?
Belo
Monte é um crime construído pelos governos do PT/PMDB. Segundo a
Operação Lava Jato, uma obra construída para a geração de propina. Como é
uma obra que começou a ser articulada com Lula e foi materializada por
Dilma Rousseff, uma parcela significativa da esquerda preferiu fechar os
olhos para Belo Monte, como faz até hoje. Os direitos humanos tanto dos
povos indígenas, o que fere diretamente a Constituição, quanto das populações ribeirinhas foram violados sistematicamente para que a usina fosse construída.
Durante a construção da usina, na segunda década deste século, pessoas analfabetas foram pressionadas a assinar papéis que não eram capazes de ler,
onde aceitavam perder tudo em troca de nada ou de uma indenização que
mal permitia viver alguns meses nas periferias de Altamira. Ninguém pode
dizer que não sabia. Embora grande parte da imprensa exaltasse a
“grandiosa obra de engenharia”, eu e outros jornalistas denunciamos as
violações em nossas reportagens. E fomos fortemente pressionados junto a
nossos editores pela empresa. Também fomos atacados por militantes nas
redes sociais.
Este,
de novo, é o problema com a morte da Volta Grande do Xingu. No momento,
Lula está preso por um processo em que há escandalosas evidências de
abusos cometidos por agentes públicos durante a instrução e julgamentos,
excessos totalmente incompatíveis com qualquer ideia de justiça. Para
piorar, a situação foi agravada pela parcialidade explícita exposta pelo
vazamento das trocas de mensagens entre o então juiz Sergio Moro, atual
ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, e os procuradores da Operação Lava Jato, revelado pela série de reportagens do jornal The Intercept. Neste cenário, quem quer lembrar do crime que é Belo Monte, este que tem o DNA de Lula e de Dilma Rousseff?
Tanto os governos do PT quanto o Governo Bolsonaro reproduzem a visão sobre a Amazônia da ditadura militar
O
outro grande obstáculo que impede a salvação da Volta Grande do Xingu, e
portanto da floresta amazônica, é que Belo Monte está totalmente
afinada com a visão de Jair Bolsonaro e do grupo de militares que o
acompanha no governo de extrema-direita. Bolsonaro já anunciou, por meio
do ministro de Minas e Energia, que viajará para Altamira no final do
ano, para orgulhosamente inaugurar a última turbina de Belo Monte, o que
significará a conclusão de uma obra que custou várias vezes mais do que
o previsto.
É preciso reconhecer e dizer, mesmo que seja
duro para alguns: a visão para a Amazônia dos governos de Lula e de
Dilma, de centro-esquerda, e do governo de Bolsonaro, de extrema
direita, é semelhante. E é totalmente afinada com a visão dos militares,
construída e difundida durante a ditadura (1964-1985): a exploração da
floresta por meio de grandes obras e grandes projetos, sem escutar os
povos da floresta nem respeitar seus direitos constitucionais, usando
como estratégia a falácia da ameaça à soberania. No trato com a Amazônia não houve ruptura política, mas continuidade.
Acompanhem o que Lula afirmou à repórter Mariana Schreiber, da BBC Brasil,
em excelente entrevista feita na prisão e publicada no último 29 de
agosto. “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não
tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada
um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Lula defende
Belo Monte durante vários parágrafos e empurra os problemas para os
governos municipal e estadual, assim como para o atual governo federal.
Concordo
com Lula que é suficiente e justo responsabilizá-lo apenas pelo período
em que ele e Dilma governaram o país e impuseram aos povos do Xingu uma
hidrelétrica que nem a ditadura tinha conseguido materializar num dos
rios mais importantes da Amazônia. E, assim, fazer a conversão de povos
ricos da floresta em pobres urbanos da periferia da cidade. E, tudo
isso, justamente num momento em que o planeta vive a emergência
climática. Para mim, e acredito que para muitos, se ele assumir a
responsabilidade do PT no que se refere à Belo Monte durante os três
mandatos completos e o quarto mandato interrompido pelo impeachment está
suficiente.
É nesse ponto de rara intersecção entre Lula
e Bolsonaro que o Xingu está morrendo. Quem então vai defender a vida
na Volta Grande do Xingu no Brasil polarizado, se isso significa tocar
no vespeiro das verdades das quais não se pode escapar? Este tem sido o
desafio da parcela respeitável do Ministério Público Federal e das ONGs
que lutam pela preservação da floresta e de seus povos, mas que hoje
foram criminalizadas por Bolsonaro e seus seguidores. Está bastante
claro que, sem a mobilização da população, não será possível salvar o
Xingu. É na Amazônia que as lideranças políticas emergentes, em especial
as identificadas com a esquerda, vão mostrar de fato quem são.
Observemos.
2016 foi “o ano do fim do mundo” para os Juruna da Volta Grande do Xingu
A
gestão da água por Belo Monte é chamada de “hidrograma de consenso”.
Apesar do nome, não há consenso algum. Está mais para “hidrograma de
conflito”. Quem decidiu quanta água seria liberada pela usina para a
Volta Grande do Xingu foram a empresa e o governo. Segundo o livro Xingu, o rio que pulsa em nós
(Instituto Socioambiental), “trata-se de um esquema hidrológico que
estipula as quantidades mínimas de água que precisariam passar pela
Volta Grande para garantir a sustentabilidade socioambiental da região. O
hidrograma tem sua origem no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do
empreendimento, anunciado como solução para conciliar a geração de
energia, a quantidade de água indispensável para as funções ecológicas
da região e a manutenção das condições de navegabilidade do rio Xingu”.
A
partir da operação total da usina, foram previstos dois hidrogramas, o A
e o B. No A, teria que passar pela Volta Grande do Xingu 4.000 metros
cúbicos por segundo durante abril, mês de maior cheia. Essa baixa
quantidade de água estressaria totalmente a fauna e a flora da região.
No ano seguinte, então, entraria em operação o hidrograma B, quando
supostamente a fauna e a flora se recuperariam com uma vazão média de
8.000 metros cúbicos por segundo também em abril.
O
problema é que, em 2016, a região viveu uma das secas mais severas das
últimas décadas e, ao mesmo tempo, foi afetada pelo barramento da usina.
Ainda assim, havia 9.763 metros cúbicos por segundo em abril. Ou seja:
mais água entrando na Volta Grande do que o pico de 8.000 metros cúbicos
por segundo previstos no hidrograma de Belo Monte. Mesmo com mais água,
os Juruna da Volta Grande batizaram 2016 de “o ano do fim do mundo”.
Peixes morreram às toneladas, assim como outros animais. A vida começou a
se tornar inviável. Caso Belo Monte execute os hidrogramas previstos,
cientistas afirmam que será o fim da Volta Grande do Xingu.
Um painel dos mais respeitados especialistas e instituições brasileiras afirmou em artigo científico:
“Está provado, cientificamente, (...) que as vazões do hidrograma
proposto no licenciamento inviabilizarão a vida na Volta Grande do
Xingu. Não há condições de que os testes dos próximos seis anos ocorram
com base no hidrograma inicialmente proposto, pois apenas se pode testar
algo que ainda não tenha nenhum indicativo ou indício de comprovação ou
de possível consolidação. A sobrevivência e a manutenção de todo o
ecossistema da Volta Grande e dos modos de vida de comunidades não podem
ser objetos de testes quando são contundentes e claras as evidências e
indicativos de impactos graves e irreversíveis que já ocorrem e estão em
curso, mesmo com vazões bem superiores às do hidrograma proposto”.
Com a corrosão do rio e as dificuldades da pesca, indígenas têm consumido mais produtos industrializados: o número de doenças aumentou
Conforme
as constatações científicas e também da vistoria interinstitucional que
foi feita na Volta Grande do Xingu em fevereiro, caso os hidrogramas
sejam colocados em prática, haverá a remoção (palavra técnica para
expulsão) dos povos indígenas Juruna e Arara, assim como de indígenas
não aldeados e ribeirinhos que vivem na região, por total
impossibilidade de sobrevivência. Todo o ecossistema será alterado, como
já está sendo. Em 2016, os peixes morreram. Em 2017, 2018 e 2019,
estavam —e estão— magros e com dificuldades para se reproduzir. As
fêmeas são encontradas com as ovas em decomposição dentro do corpo. Os
indígenas passaram a se alimentar principalmente de alimentos
industrializados, o que vem provocando doenças como hipertensão e
diabetes. A própria Norte Energia S. A. reconhece os efeitos nefastos da
vazão reduzida em relatório: “Quatro das seis etnoespécies mais
importantes para os indígenas da Volta Grande do Xingu apresentaram uma
sutil redução de tamanho e uma diminuição mais significativa de peso.
Essa diminuição foi mais forte no caso do pacu branco, principal espécie
consumida pelos indígenas”.
Toda alteração tem efeito em
cadeia, já que tudo é conectado na natureza. Está em curso uma
catástrofe que afetará a maior floresta tropical do mundo. Não há chamas
nesta tragédia, mas a Volta Grande do Xingu está sendo calcinada.
Em
30 e 31 de maio, o MPF realizou um seminário técnico na Procuradoria
Geral da República, em Brasília. Foi constrangedor. A Agência Nacional
de Águas (ANA) afirmou que só definiu as vazões mínimas para a
navegabilidade, mas a responsabilidade da viabilidade ambiental era toda
do Ibama. Já o Ibama, por sua vez, disse que o hidrograma tinha sido
aprovado pela ANA. Ele, Ibama, tinha reconhecido a inviabilidade do
hidrograma A e questionado o B. A Fundação Nacional do Índio (Funai)
enfatizou que os impactos sobre as populações indígenas já foram ainda
maiores do que os previstos.
A corrupção tornou possível uma gestão da água incompatível com a vida no Xingu
Como
então foi possível? Tanto na recomendação de que o “hidrograma de
consenso” seja suspenso quanto no relatório parcial que o MPF de
Altamira produziu no curso do inquérito civil que acompanha a licença
prévia dada a Belo Monte, a procuradora Thais Santi aponta a
investigação da Operação Lava Jato sobre a obra. O que tornou possível
seria a corrupção. Diz o documento:
“No presente momento,
há elementos mais do que suficientes para se supor que o que ficou
conhecido como ‘Hidrograma de Consenso’ é um arranjo, que sustou
complexo esquema criminoso para viabilizar a construção da UHE Belo
Monte, no interesse de um cartel de empreiteiras e de integrantes de
partidos políticos, na obtenção de vantagem indevida, com riscos ao meio
ambiente e aos recursos federais aplicados”.
De novo, não há nenhuma novidade. O leilão que tornou a Norte Energia a concessionária de Belo Monte era claramente um escândalo na época, em 2010. Mas não foi tratado como escândalo, porque nem a direita nem a esquerda estavam interessadas em denunciá-lo. Vale a pena prestar atenção a essa parte do documento do MPF de Altamira datado do final de agosto:
O leilão de Belo Monte, segundo a Lava Jato, foi uma farsa
“Conforme
consta da denúncia proposta pela Força Tarefa Lava Jato em face de
Edson Lobão e outros, a estruturação do esquema de desvio de recursos da
UHE Belo Monte, mediante ação de cartel integrado pelas construtoras
Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e agentes do Governo
Federal, pôs em curso uma pseudodisputa temerária, mediante a criação às
pressas da empresa (Norte Energia S/A) destinada a vencer o leilão da
hidrelétrica, com lance inexequível. Nesse contexto, forma-se um grupo
investidor – fadado a ser deficitário – que disputa a concessão da
hidrelétrica mediante proposta apresentada com deságio direcionado para a
vitória certa no leilão, porém sem estudo de viabilidade econômica.
(...) Após sagrar-se vencedor do leilão, (...) na conhecida troca de
cadeiras, as construtoras reduzem expressivamente seu controle
acionário, e passam a integrar o Consórcio Construtor Belo Monte, que
será então contratado pela concessionária”.
Para ficar
mais claro. O que aconteceu no leilão de Belo Monte, em 2010, é que as
grandes construtoras se retiraram da disputa porque não haveria lucro na
administração da hidrelétrica. A usina seria economicamente inviável.
Apenas uma delas, a Andrade Gutierrez, permaneceu no único consórcio
existente, possivelmente como disfarce. Foi então formado às pressas um
outro consórcio, para dar aparência de disputa, composto por pequenas
construtoras sem nenhuma tradição em obras do porte de Belo Monte. Quem
ajudou a organizar esse consórcio foi Delfim Netto. Chamado de Norte
Energia, o consórcio de última hora “ganhou” a “disputa”. O ex-ministro
de governos da ditadura nega o recebimento de propinas e já disse, por
meio de seus advogados, que recebeu apenas honorários por serviços de
consultoria.
Em seguida ao leilão, as grandes
construtoras que não disputaram —Camargo Corrêa e Odebrecht—, a grande
construtora que disputou e perdeu —Andrade Gutierrez— e as pequenas
construtoras que ganharam mas progressivamente foram deixando a Norte
Energia, formaram juntas o Consórcio Construtor Belo Monte. Era ali que
estava o lucro —e, segundo a Lava Jato, também a propina que teria sido
combinada com PMDB e PT. As construtoras sabiam que havia muito mais
vantagem em construir a usina, o que também significava que estariam
livres de responder por qualquer um dos grandes passivos
socioambientais, que ficariam a cargo da concessionária Norte Energia,
grande parte dela formada por estatais e fundos de pensão.
Desde
antes do leilão e da construção de Belo Monte, especialistas deixaram
claro que, como o Xingu passa metade do ano com pouca água, por conta da
seca sazonal, a operação da usina poderia ser deficitária do ponto de
vista energético e econômico. O que o Ministério Público Federal
denuncia neste momento é que, para Belo Monte ser economicamente viável,
está matando a Volta Grande do Xingu. Esta é a história de como a
corrupção está secando um pedaço da Amazônia. É também a história de
como uma parte da esquerda e uma parte da direita preferem se omitir
para não ter de encarar seus crimes e/ou interesses de lucros
econômicos, mesmo que isso custe vidas humanas e aprofunde o colapso da
Amazônia, hoje perigosamente perto do ponto de não retorno.
“O
que chamam de Hidrograma de Consenso deveria ser a maior mitigação dos
danos provocados por Belo Monte no Xingu. E o que vemos é que é o maior
impacto. Como a maior mitigação pode ser o maior impacto?”, questiona a
procuradora Thais Santi. “A notícia é esta: o Xingu vai morrer. A
partilha da água da Amazônia já começou e está pautada pela corrupção.” A
partir dos estudos que a filósofa Hannah Arendt fez dos estados
totalitários, a procuradora considera Belo Monte “o mundo do tudo é
possível”. Santi afirma: “Se o mundo da lei funcionasse, Belo Monte
teria que ser fechada. A ninguém é dado o direito de matar o Xingu”.
Belo
Monte segue sendo o inescapável neste país. Exatamente por isso muita
gente continua repetindo que ela já é “fato consumado”. Cansei de ouvir:
“Esquece Belo Monte. É verdade, foi horrível o que fizeram, mas já é
passado”. Pergunta-se. Passado para quem? Para os que são empurrados
para a periferia de Altamira para passar fome ou morrer à bala? Para a
cidade que se tornou uma das mais violentas do Brasil, hoje a mais
violenta da Amazônia? Para os indígenas que comem macarrão instantâneo
porque falta peixe? Para as famílias ribeirinhas que esperam até hoje
serem assentadas no reservatório, enroladas dia após dia pela Norte
Energia? Para a floresta? Para os que morrem?
Não esqueceremos. Nem deixaremos esquecer.
Em 29 de julho, 58 presos foram mortos no presídio de Altamira.
Decapitados ou queimados. As primeiras chamas, é preciso lembrar, foram
anunciadas dentro do sistema e queimaram corpos humanos. Em seguida,
outros quatro presos foram executados quando eram transferidos,
totalizando 62 mortos em dependências do Estado. Foi o segundo pior
massacre da história do sistema carcerário brasileiro, só perdendo para o
Carandiru, em São Paulo. O DNA de Belo Monte estava lá, tanto na
violência que multiplicou-se na cidade com a construção da usina quanto
no atraso da entrega do novo presídio, parte das obrigações acordadas
pela Norte Energia e até hoje não cumprida.
Com o
massacre, Belo Monte e a Norte Energia voltaram ao centro do noticiário.
Apenas alguns dias depois, porém, a floresta começou a incendiar numa
proporção muito maior do que no ano anterior e com ações programadas por
WhatsApp e anunciadas pelo jornal de Novo Progresso, como o Dia do
Fogo, organizado na região da BR-163. As chamas desviaram a atenção e
cobriram de fumaça e cinzas outras catástrofes em curso. Na Amazônia,
assim como no Brasil atual, há sempre uma tragédia se sobrepondo à
outra, o que colabora para a desmemória e para os apagamentos.
O próximo golpe na Volta Grande do Xingu se chama Belo Sun
A
destruição da Volta Grande do Xingu é acompanhada com grande interesse
pela mineradora canadense Belo Sun. Com a progressiva corrosão da vida
na região e a crescente impossibilidade da existência dos indígenas,
as barreiras para a instalação da gigantesca mineração de ouro vão se
fragilizando. Abrir a Amazônia para a mineração é um dos principais
objetivos do Governo Bolsonaro. A autorização para Belo Sun depende,
porém, de outro personagem, o governador do Pará, Hélder Barbalho (MDB).
Nos próximos dias, semanas e meses, será decidido se a Volta Grande do
Xingu, e com ela o rio e uma parte da Amazônia seguirão morrendo, com
reações em cadeia, ou se ainda há possibilidade de barrar essa operação
de extermínio que poderá repercutir em todo o planeta.
No seriado de TV Chernobyl,
que causou grande impacto recentemente, o personagem do cientista russo
Valery Legasov, que na vida real se suicidou para chamar atenção para a
verdade da tragédia, traz um monólogo que cabe com perfeição ao que
hoje testemunhamos na operação de Belo Monte. Durante o julgamento dos
culpados por uma das maiores catástrofes atômicas da história, ele diz:
“Eu
menti ao mundo. Não sou o único a esconder esse segredo. Há muitos
outros. Cumprindo ordens. (...) Nossos segredos e mentiras são
praticamente o que nos define. Quando a verdade nos ofende, nós mentimos
e mentimos, até que não nos lembramos mais de que a verdade existe. Mas
a verdade ainda está lá. Cada mentira que contamos gera uma dívida com a
verdade. Cedo ou tarde essa dívida deve ser paga”.
Veremos
como os petistas com consciência vão agir diante do legado inescapável
de Belo Monte —e como o bolsonarismo sem consciência vai responder à
tragédia em curso. No momento, Bolsonaro já declarou que vai retomar a
construção das grandes hidrelétricas na Amazônia. Depende de cada um de
nós impedir que essa dívida com a verdade seja paga pelo sacrifício da
Volta Grande do Xingu e de seus povos.
Fonte: El País
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