“Os Governos devem gastar na prevenção de pandemias o mesmo que em Defesa”
O
virologista espanhol Adolfo García-Sastre, chefe de patógenos
emergentes do Hospital Monte Sinai, em Nova York, prevê que a epidemia
de coronavírus terminará em um ano, havendo ou não vacina
Nuño Domínguez
Madri - 24 mar 2020 - 19:00 BRT
Adolfo García-Sastre esteve cara a cara com a pior pandemia da história recente. Sua equipe foi uma das que conseguiram ressuscitar o vírus da gripe de 1918
para estudá-lo e entender como infectou um terço da população do
planeta ―cerca de 500 milhões de pessoas― e acabou com a vida de 50
milhões, a maioria jovens saudáveis. A principal conclusão é que as pandemias são recorrentes ―há uma gripe a cada 20 anos mais ou menos― e praticamente inevitáveis. Apesar disso, diz, quase nenhum país toma medidas para estar preparado, como foi demonstrado com a atual pandemia de coronavírus.
A equipe deste microbiologista de 55 anos nascido em Burgos, diretor do Instituto de Saúde Global e Patógenos Emergentes
vinculado ao Hospital Monte Sinai, em Nova York, se dedicou à pesquisa
sobre o novo vírus. Sua equipe trabalha sem descanso em quatro frentes:
testar medicamentos já aprovados para o câncer e outras doenças em
culturas de células de primatas para verificar se neutralizam o vírus;
desenvolver camundongos humanizados para testar esses medicamentos; ajudar a desenvolver uma vacina
―colabora com o laboratório espanhol de Luis Enjuanes e Isabel Sola― e,
finalmente, encontrar marcadores moleculares no sangue dos infectados
que possam predizer quem terá uma doença leve e quem corre risco de
morrer. É algo essencial para priorizar casos com os sistemas de
saúde levados ao limite pela pandemia, que já atingiu 382.000 contágios
confirmados em 168 países. Um de seus principais problemas é o espaço:
no laboratório de alta segurança biológica necessário para lidar com o
vírus vivo cabem apenas quatro pessoas por vez.
Pergunta.
Na pandemia de 1918 houve uma segunda onda que foi a mais mortal.
Haverá uma segunda epidemia de coronavírus em outubro ou será erradicada
antes?
Resposta. Erradicar é impossível. Isso só poderia ser feito se tivéssemos uma vacina muito boa e houvesse uma campanha de vacinação em massa em todo o mundo. Isso é muito difícil de implementar. Estamos
lutando há décadas para erradicar o sarampo e a poliomielite, doenças
para as quais existem vacinas, e não conseguimos. Infelizmente, mesmo
que tenhamos uma vacina, não poderemos erradicá-lo. O que será possível é
que o vírus circule em grupos de menor risco, os mais jovens, pessoas
que nasçam depois desta pandemia. Com a gripe pandêmica isso leva cerca
de um ano e geralmente são necessárias duas ondas, às vezes três.
Acredito que haverá duas ondas, talvez três, mas daqui a um ano, mesmo
que não haja vacina, 40% ou 50% da população mundial terá sido
infectada, o que dará lugar a que o vírus freie sua propagação. Tudo
depende de quanta gente for infectada em cada uma.
Será diferente em cada país. Quanto mais gente for contagiada na
primeira, haverá menos na segunda e vice-versa. É muito difícil de
prever.
P. Como se explica que o vírus esteja matando mais homens do que mulheres?
R. Não
sabemos. As mulheres geralmente têm uma resposta imunológica mais
forte. Um sistema imunológico mais forte tem mais probabilidade de que
este se volte contra o próprio corpo e o ataque, o que explica por que
elas sofrem mais doenças autoimunes. Talvez no caso deste vírus esse
desequilíbrio entre os sexos seja mais acentuado, embora na verdade não
sabemos.
P. O tabagismo também poderia ser parte da explicação [a imensa maioria dos fumantes na China são homens]?
R. Este vírus ataca o pulmão.
Quanto mais fraco for o seu pulmão, maior a probabilidade de ter
complicações por pneumonia. Tudo depende de quanto o tabaco afete sua
capacidade pulmonar. Fumar em geral a reduz, mas sabemos que
existem fumantes muito frequentes que, por algum motivo, não são tão
afetados. É mais provável que você tenha uma capacidade pulmonar melhor
se não fumar, mas isso não significa que todos os fumantes morrerão e o
restante se salvará.
P. O verão ajudará a reduzir o contágio?
R. Não
se sabe, mas é provável que sim. Estamos vendo que o calor não o
elimina, por exemplo, há casos em Cingapura, um país muito quente,
embora não avance tão rápido lá. De novo, as medidas de contenção
tomadas lá podem ter funcionado melhor do que em outros países. Existem
três fatores: quantas pessoas são suscetíveis, o que em princípio seria
toda a população da Terra; a densidade de população e os contatos
frequentes entre as pessoas, aqui entram as medidas de distanciamento social; e o terceiro são as condições ambientais, também incontroláveis.
P. Quais são as possibilidades de termos medicamentos eficazes contra o Covid-19 antes do pico da epidemia?
R. Não
haverá medicamento milagroso que cure completamente a doença.
Conhecemos drogas desse tipo, existem para bactérias, são os
antibióticos. Não temos nada parecido para os vírus, porque são mais
difíceis de conter. Usam nossa maquinaria biológica para fazer
cópias de si mesmos e inibir essa maquinaria é muito mais difícil e
perigoso. Podemos encontrar alguma substância que funcione parcialmente,
que ajude a diminuir a taxa de mortalidade e de doença severa,
mas não haverá nada que o detenha completamente e evite que alguém
morra. Por enquanto, o mais promissor é o uso de soro hiperimune de
pessoas que já estiveram em contato com o vírus. Esse soro pode ser dado
a outros pacientes e diminuirá a concentração do vírus, embora não o
bloqueie completamente. Existem outras moléculas, a cloroquina, os
inibidores da polimerase, de proteases, que parecem funcionar, mas seu
impacto ainda deve ser verificado.
P. Quanto tempo acredita que essa pandemia vá durar?
R. Estará
resolvida dentro de um ano, mais ou menos, mesmo sem vacina. Dentro de
um ano se poderá começar a levar uma vida normal. Haverá infecções, mas
será mais fácil controlá-las. Quando o número de infecções começar a
diminuir, é importante não cantar vitória, não sair todo mundo às ruas
para levar uma vida normal, porque é fácil que o vírus volte a atacar. Teremos de voltar à vida normal aos poucos e estar preparados para isolar as pessoas novamente se for necessário.
P. Como se conseguirá evitar que o vírus continue circulando?
R. Existem
duas possibilidades. A primeira é que se contenha porque todos, ou a
grande maioria, terão sido infectados. Quando isso acontecer, o vírus
deixará de se transmitir bem. É possível, mas improvável, que o vírus
sofra mutação e continue a causar problemas. A segunda opção é que acabe
de maneira semelhante, mas em parte graças a uma vacina que permita imunizar boa parte da população. [A vacina não estará disponível antes de um ano e meio, aproximadamente].
P. O senhor diz que esse vírus é muito menos letal do que as estatísticas dizem. Por quê?
R. Deve
haver 10 vezes mais casos do que conhecemos, é possível que mais.
Quando aparecem casos do nada, sem que saibamos quem pode ter te
infectado, sabemos que tem de haver mais alguém contaminado que não foi
detectado. O número de casos confirmados depende dos testes de
diagnóstico feitos em cada país. Isso explica as discrepâncias entre o
número de contágios e o de mortes entre os EUA, a Alemanha e a Espanha. O
vírus não é mais letal em um país do que em outro. É porque cada país faz um determinado número de testes.
P. O que o senhor pensa da recomendação da OMS de fazer o maior número de testes possível?
R. Depende
de quantos estão disponíveis. Em um mundo ideal, todos nós faríamos o
teste a cada dois dias com um dispositivo pessoal. Quem dá positivo se
isola. Isso é impossível. No início da epidemia, quando há poucos casos,
é importante saber quem está infectado para poder interromper a cadeia
de contágios. Para isso, é preciso fazer testes de forma muito agressiva
em todos os contatos de uma pessoa infectada. Quando o vírus já está
muito disseminado, isso não ajuda tanto. Se, por exemplo, 1% da
população tiver o vírus, muitos casos escaparão. A esta altura o
importante é se isolar, prevenir os contágios.
Se há poucos testes, é mais importante fazê-los nos doentes graves
porque, se eles realmente têm gripe ou uma doença bacteriana, sabemos
que são tratáveis.
P. O que falhou com esta pandemia?
R. É muito difícil saber o que poderia ter sido feito melhor. O
principal problema não é tanto se as medidas de contenção foram tomadas
mais cedo ou mais tarde. Isto vem de muito antes. Sabia-se que essas
pandemias poderiam acontecer. Sabemos que, em relação à gripe, ocorrem a
cada 20 ou 30 anos e que têm uma severidade semelhante à atual, mas não nos preparamos para elas.
Não temos leitos suficientes, nem pessoal, nem material. Não é um
problema do Governo atual ou do anterior, é de todos os Governos. Também
não é um problema da Espanha, mas de todos os países. Ninguém lutou
para financiar isto. Isto explica por que agora temos de adotar medidas
de contenção tão severas para tentar evitar o colapso.
P. Outra pandemia como essa acontecerá novamente?
R. Sim,
haverá outra pandemia, provavelmente de gripe. O importante é termos
desde já orçamentos já para detê-la. Os Governos devem investir contra
as pandemias o mesmo que gastam em defesa. Para fazer guerra com outros
países ou nos defender se gasta muito dinheiro em armamento, tanques,
torpedos, mísseis, que no final não são usados, mas são considerados
necessários no caso de que haja um ataque. Com isto é igual: uma
pandemia tem quase mais probabilidade de nos afetar do que uma guerra. Devemos ter capacidade hospitalar e serviços caso aconteça uma nova.
P. É possível evitar o aparecimento de novos patógenos que surgem de animais selvagens?
R. É
muito difícil. O exemplo da gripe é claro. A gripe deveria ser
erradicada nos animais selvagens em que está, nas aves selvagens. É
impossível acabar com ela. Você pode fazer com que uma pandemia seja menos provável, mas não pode eliminar tal risco. Isso custará muito dinheiro e terá de ser pago mesmo que nada aconteça.
Fonte: El País
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