Uma só enzima pode explicar por que o coronavírus mata mais homens que mulheres?
Proteína
que serve como porta de entrada para o vírus tem também propriedades
anti-inflamatórias que protegem contra as manifestações graves da
covid-19
Daniel Mediavilla
18 may 2020 - 13:53 BRT
O
senso comum, com seus atalhos para simplificar as complexidades da
vida, pode ser um obstáculo ao conhecimento. O presidente dos EUA, Donald Trump,
caiu há alguns dias em um erro típico do pensamento intuitivo quando
aplicado à solução de problemas de saúde. Se aspergir desinfetante sobre
superfícies nocauteia o vírus em um minuto, por que não injetá-lo nos pacientes contagiados pelo novo coronavírus? No extremo oposto, não pareceria muito razoável administrar substâncias venenosas a um paciente debilitado por um câncer, mas décadas de estudo demonstraram que fazer isso desacelera a enfermidade.
Poucas semanas depois da aparição do novo coronavírus, já se falava da ECA2 (enzima conversora da angiotensina-2) como uma das portas de entrada do vírus nas células humanas.
Essa enzima, fundamental na regulação da pressão arterial, também
servia como via de assalto para o SARS-CoV, o parente do atual vírus que
causou uma epidemia em 2003. Aplicando o senso comum, níveis maiores de
ECA2 facilitariam a entrada do vírus. Essa ideia produziu momentos de
confusão nas últimas semanas. Os medicamentos para a pressão alta, por
exemplo, elevam os níveis desta enzima e levaram a crer que poderiam
agravar o curso da covid-19.
E algo semelhante ocorreu com o ibuprofeno. Também foi publicado que os
homens morrem mais dessa doença por terem mais ECA2 no sangue. A
história é mais complexa.
Segundo José Luis Labandeira,
catedrático de Anatomia Humana da Universidade de Santiago de Compostela
(Espanha), “o sistema da angiotensina tem dois eixos, um que poderíamos
chamar de ruim, pró-inflamatório, que representado pela enzima ECA, e
um bom, anti-inflamatório,
o da ECA2”. “Os genes da ECA2 e algum outro componente do eixo
anti-inflamatório se expressam no cromossomo X e, como as mulheres têm
dois, têm uma maior expressão desses componentes benéficos”, acrescenta
Labandeira.
Com estas características, as mulheres
estariam em desvantagem com sua maior carga da proteína que serve de
via de acesso ao vírus, mas seu efeito anti-inflamatório protege das
manifestações mais letais da doença, como as pneumonias.
Um indício de que neste jogo de equilíbrio o efeito benéfico ganharia
do prejudicial é que a maioria dos mortos são pessoas em idade avançada,
e a presença da ECA2 diminui com o passar dos anos. “Pelo que sabemos
até agora, parece que ECA2 é uma faca de dois gumes e temos que aprender
a lidar com ela, vendo como manter seus efeitos positivos e bloqueando
só os fragmentos concretos que servem de porta de entrada para o vírus”,
conclui Labandeira.
Bloquear parte da enzima, mas sem anulá-la, é um minucioso trabalho biotecnológico
que já está sendo feito por vários grupos de pesquisa e empresas de
todo o mundo a partir dos anticorpos monoclonais, moléculas que podem
aderir a trechos precisos dos vírus para incapacitar sua seção de ataque
ou seu processo de reprodução. E há alternativas ainda mais originais.
Em
Valência, no Instituto da Biomedicina do CSIC (agência estatal de
pesquisa científica da Espanha), Alberto Marina e Vicente Rubio procuram
conservar o anverso positivo da ECA2 utilizando a seu favor o reverso
tenebroso da enzima. Seu objetivo é desenhar variantes artificiais da
proteína que não influam, por exemplo, na pressão arterial do paciente,
mas que possam funcionar como isca para que o SARS-CoV-2 se una a elas e deixe o organismo em paz. Rubio, que lidera com Marina esse projeto do Ciberer
(Centro de Pesquisa Biomédica em Rede de Doenças Raras, na sigla em
espanhol), conta que um dos impulsos para iniciar o projeto foi uma
morte próxima, a de sua primeira técnica de laboratório, com pouco mais
de 70 anos. “Tentaram de tudo com ela e nada funcionava, e achei que
eram necessárias alternativas”, recorda.
A experiência da
equipe do Ciberer vem da biologia estrutural. Observam as proteínas com
detalhe atômico e veem como umas se encaixam nas outras, como peças de
um quebra-cabeça. “Queremos fabricar um super-receptor, que tenha uma
afinidade aumentada pelo vírus”, explica Rubio. Junto a essa tentativa
de fabricar um medicamento, que se encontra em uma fase muito
preliminar, querem compreender melhor o mecanismo que permite ao vírus
infectar as células, para poder desenhar moléculas específicas que
impeçam essa invasão, em lugar de testar inúmeras até encontrar uma que
funcione.
No caminho, para fabricar uma isca melhor,
querem estudar se há variantes genéticas que expliquem por que algumas
populações são mais suscetíveis ao vírus que outras. “A população
afro-americana, por exemplo, tem níveis menores de ECA2 e observou-se
que a pressão arterial está relacionada com a cor da pele, e que os afro-americanos
têm uma patologia cardiovascular mais acentuada”, explica Marina.
“Agora, estão sendo buscadas correlações deste tipo que sejam sólidas
para depois analisar se existe casualidade”, conclui.
Decifrar
os mecanismos precisos que explicam o funcionamento desta enzima e sua
relação com o coronavírus ajudará a superar as armadilhas do senso comum
para começar a compreender o que está acontecendo e poder agir com
conhecimento.
Fonte: El País
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