As lições de um novo surto de covid-19 na Alemanha
Contágio
de funcionários de um matadouro leva Europa, em plena fase de
desescalada, a temer retrocesso. Para especialistas, novos casos são
inevitáveis e o importante é países estarem preparados
Madri - 19 jun 2020 - 11:27 BRT
A detecção de um surto de coronavírus
entre os funcionários de um matadouro alemão com 650 afetados levou ao
centro da Europa, em plena fase de desescalada, o temor de um
retrocesso. Na Espanha, a três dias de serem autorizadas as viagens
entre regiões e a entrada de turistas do exterior, em 21 de junho, o caso é acompanhado com atenção pelas implicações que podem ter na passagem à chamada nova normalidade. A situação na Alemanha, noticiada na quarta-feira, foi um alerta para todos.
Por que é tão importante?
A Espanha, como a Alemanha, é dos países que escolheram conviver com o
vírus, sem apostar na erradicação total, explica Patricia Guillem,
catedrática de Epidemiologia da Universidade Europeia de Valência. Nos
dois países foram adotadas praticamente as mesmas medidas, e ambos
tinham, antes do surto na Renânia do Norte-Vestfália, incidências
inferiores a 7 casos por 100.000 habitantes no período de uma semana. De
fato, os primeiros turistas que chegaram às ilhas Baleares nesta
semana, no plano-piloto do Governo antes de reabrir as fronteiras na
próxima segunda-feira, são alemães, escolhidos justamente por provirem de um país considerado seguro —e muito importante turisticamente.
Pode-se repetir?
“Levando-se em conta que o vírus não foi embora, sim”, diz Pedro
Gullón, da Sociedade Espanhola de Epidemiologia. “O caso da Alemanha é
um repique, e algo parecido pode acontecer aqui”, concorda Daniel López
Acuña, ex-diretor de Ação Sanitária em Crises da Organização Mundial da Saúde (OMS)
e atual professor-associado na Escola Andaluza de Saúde Pública.
“Repique haverá. Isso indica que o vírus continua circulando, embora
tenha decrescido muito. Basta uma pessoa portadora para iniciar uma
cadeia, porque o vírus é supertransmissível”,
acrescenta Guillem. Joan Ramon Villalbí, membro do conselho diretor da
Sociedade Espanhola de Saúde Pública e Administração Sanitária (Sespas),
afirma que “isso já está acontecendo aqui, embora numa escala menor”, e
cita os recentes focos de Castela e Leão, Girona e Madri.
A detecção. “Quando
falamos de 650 casos, certamente estamos nos referindo a que houve
transmissão durante um tempo, um período-janela, possivelmente
assintomática”, opina Gullón. Guillem é mais crítica: “Parece que na
Alemanha os casos começaram a aumentar antes, mas demoraram para ser
comunicados. Isso não pode acontecer.” Apesar disso, “o importante é que
pôde ser detectado e controlado”, diz Gullón. “Nos momentos mais agudos
não teriam sido capazes de vê-lo”, acrescenta. “Em muitos destes
lugares, os trabalhadores têm condições precárias, e é muito provável
que alguém doente não fique em casa e vá trabalhar”, aponta Villalbí.
“Isto certamente foi assim nos casos dos Estados Unidos”.
Preparação para recaídas. É
o ponto-chave, concordam os especialistas. “Na Espanha haverá novos
surtos. O importante é que sejamos capazes de detectá-los”, diz Gullón.
“Esse é o sentido da desescalada: estarmos preparados para fazer o
acompanhamento dos novos casos. Para isso é importante que os serviços
de saúde pública estejam bem equipados.
Patricia
Guillem aponta como na Alemanha, na terça-feira, entrou em
funcionamento um aplicativo para celulares de uso voluntário, no qual o
Governo investiu 20 milhões de euros (cerca de 120 milhões de reais).
“Na Espanha há muita rejeição, por causa da proteção de dados”,
acrescenta a epidemiologista, que vê outro aspecto a observar: os
limites à lotação de espaços nos hospitais e postos de saúde e o impacto
disso no atendimento aos pacientes. “Não se pode confiar tudo à
telemedicina. Se um médico recebe 30 pacientes por dia, talvez tenha que
dobrar turnos para receber 15 de manhã e 15 à tarde.” Villalbí alerta
para a importância e dificuldade de fazer que tudo funcione corretamente
desde o começo. “Se fazendo tudo certo há situações que nos escapam, é
fácil imaginar o que acontece quando algo vai mal”, afirma.
A proteção. A possibilidade de novos surtos
exige a manutenção das medidas de proteção, diz Gullón. Guillem
acrescenta que vê muitas máscaras de tecido, sem filtro, que podem ser
contraproducentes. “Não protegem você, nem você protege [os outros]”,
afirma. “É preciso manter a guarda alta com medidas de distanciamento
físico, uso de máscara,
medidas higiênicas e reforço da vigilância epidemiológica. E evitar a
todo custo as aglomerações e rodinhas”, recomenda López Acuña.
Os afetados. No
caso alemão, os contagiados são cidadãos do Leste Europeu deslocados
para trabalhar na empresa por uma temporada. Villabía aponta que essas
condições foram importantes em outros surtos, como em Singapura, associado a imigrantes do Sudeste Asiático, na Suécia, muito ligado aos refugiados somalis, e no Oriente Médio,
com uma incidência muito alta em trabalhadores provenientes de
Bangladesh e Filipinas. E acrescenta que em muitos destes lugares as
condições de trabalho são precárias “e é possível que algum doente tenha preferido trabalhar porque, do contrário, não receberia”.
O local de trabalho. O repique alemão ocorreu entre trabalhadores de um matadouro e um frigorífico, cenário habitual em outros focos do coronavírus
no mundo. Nos Estados Unidos houve uma crise quando quiseram fechar
algumas dessas instalações, e na Espanha houve vários episódios, como os
de Lleida na segunda semana de maio ou o que está agora em curso no
frigorífico Noel (Girona, Catalunha). São lugares fechados, onde é
difícil manter a distância de segurança, por isso são propícios à
transmissão do vírus, diz a epidemiologista Guillem. O mesmo acontece
com os mercados —como o caso recente de Pequim, com 137 afetados—, centros hospitalares, e, adverte a catedrática, será preciso ver o que acontece nas escolas quando as férias acabarem.
Além disso, Guillem aponta outro fator: são lugares barulhentos, e o
ruído, como o exercício, faz as pessoas respirarem de forma diferente, e
inclusive leva alguns a se distraírem e reduzirem as medidas de
proteção.
A moradia e o transporte. No caso alemão, além da convivência durante a jornada na empresa, os trabalhadores compartilhavam alojamento e vários viajaram em um ônibus lotado a seus países no Leste Europeu. Na Espanha não foram descritos focos no transporte público,
embora seja certeza que este foi um fator decisivo na propagação do
vírus no início da pandemia, sobretudo no metrô nas principais cidades.
Mas parece que as condições de aglomeração dos trabalhadores em alguns
setores contribuíram também.
O tipo de surto. “Um
repique não é o mesmo uma transmissão generalizada”, diz Gullón. Na
Alemanha houve este último, em um momento em que ainda há transmissão
comunitária. “É uma ótima notícia que sejamos capazes de detectar,
isolar e fazer exames. Agora é possível descobrir esses focos de
doença”, indica. Por outro lado, com menos de 200 casos ao redor de um mercado de Pequim, a China tomou medidas drásticas para controlá-lo. Embora as autoridades garantam que esse surto foi controlado,
López Acuña recomenda muita atenção. “Tudo parece indicar que não é um
repique do vírus de Wuhan, mas sim que se trata de um surto de um vírus
com mutação, possivelmente mais agressivo. Isto é preciso estudar melhor
e nos situaria ante o risco de um novo ciclo pandêmico se não for
controlado de forma rápida e adequada.”
As viagens. Villalbí afirma que, apesar de a Espanha reabrir as fronteiras na próxima segunda-feira, será apenas no âmbito do Espaço Schengen,
com países “que têm condições como as da Espanha ou melhores, no caso
da Alemanha”. Isso sim, “cruzaremos com mais gente, e investigar os
casos e sua transmissão será mais complicado, esperemos que com poucos
casos”, acrescenta. Com esta situação “certamente haverá incidência nos
casos”. “É preciso salientar a importância das cautelas com o turismo
estrangeiro, a supressão de quarentenas e o fechamento e abertura de
fronteiras. É muito prematuro abrir o fluxo de viajantes de países com
transmissão comunitária ativa, seja EUA, Rússia, Índia, China, Irã ou América Latina”,
afirma López Acuña. “Se houvesse um repique e as fronteiras voltarem a
ser fechadas, o dano seria irreparável”, afirma Guillem. “Os corredores
seguros tampouco são uma ideia tão desatinada”, acrescenta, mas com
controles rigorosos. “Tomar a temperatura não serve de quase nada.”
Fonte: El País
Comentários
Postar um comentário
Todas postagem é previamente analisada antes de ser publicada.