“Em meio à pandemia, fomos tratados como números”, diz professor demitido da Uninove
Universidade
enviou mensagens eletrônicas em massa para docentes, avisando que eles
foram desligados sumariamente. Segundo sindicato, número de afetados
pode chegar a 300
Heloísa Mendonça
São Paulo - 24 jun 2020 - 20:18 BRT
Na
última segunda-feira, dez minutos antes de começar uma aula no curso de
Direito, a professora Ana Cristina* não conseguiu ter acesso a
plataforma de ensino à distância da Universidade Nove de Julho (Uninove) que vinha utilizando desde que as classes presenciais foram suspensas em meio à pandemia do coronavírus. Ela foi surpreendida por uma mensagem de pop-up, que anunciava sua demissão.
“Atenção!
Prezado (a) professor (a), comunicamos que em 22 de junho de 2020, fica
V. Sa. dispensada de prestar serviço a esta empresa sem obrigatoriedade
inclusive do cumprimento do aviso prévio previsto em lei, o qual
ser-lhe-á pago em conformidade com o que estabelece a legislação
trabalhista pertinente”, dizia o texto. A mensagem sequer trazia o nome
da professora. “Foi cruel abrir a tela e ver isso. Tanto a forma como
foi feita, totalmente impessoal e sem explicações, como o contexto em
que se deu foram surpreendentes. A gente teve que se desdobrar nos
últimos meses para fazer funcionar esse novo sistema à distância.
Demos nosso sangue e chega no fim do semestre e somos tratados assim?”,
questiona. O texto informava ainda que os profissionais deveriam
comparecer ao departamento de Recursos Humanos para efetuar a devolução
de “crachá, cartão de acesso, cartão de estacionamento, carteirinhas de
assistência médica e/ou odontológica” e dar prosseguimento à baixa na
carteira de trabalho.
O
anúncio que chegou ao sistema de Ana Cristina foi disparado para outras
dezenas de professores de diversos dos 80 cursos oferecidos pela
instituição. Segundo o Sindicato de Professores de São Paulo (Sinpro-SP),
até o início da manhã desta quarta-feira, mais de 120 professores
mandaram mensagens avisando que foram demitidos no início da semana pela
Uninove. Os profissionais são de diferentes departamentos, alguns
trabalhavam há anos na instituição e outros foram recentemente
contratados. “Certamente esse número deve ser maior, já que não temos o
contato de todos os professores da Uninove. Falam em 300. A demissão em
massa é grave e gera forte impacto”, afirma Silvia Barbara, uma das
diretoras do sindicato.
Ela explica, entretanto, que
esses desligamentos fazem parte de um processo de reestruturação que
várias universidades já estavam fazendo para diminuir a folha de
pagamento. E ressalta que, desde que uma portaria do Ministério da
Educação (MEC), de dezembro do ano passado, permitiu que cursos
superiores ofertados na modalidade presencial ofereçam até 40% de sua
carga horária total através da modalidade a distância (EAD) ― antes era
permitido apenas 20%―, professores vem sendo demitidos e o número de
alunos por sala aumentado bastante. “Gasta-se muito menos com a folha de
pagamento, num trabalho muito mais precário, em que se sobrecarrega os
professores”, diz. O sindicato protocolou um dissídio coletivo no
Tribunal Regional do Trabalho (TRT) na terça-feira, 23, para pedir a
anulação dos desligamentos.
A Uninove não revelou o
número de docentes que perderam seus empregos no início da semana, mas
disse, por meio de nota, que diante da pandemia tiveram que se adaptar
situação e foram ao limite para manter o quadro funcional e todas as
obrigações contratuais em dia. “Salários dos professores foram
garantidos pontualmente e vultosos investimentos em tecnologia
realizados. As mensalidades estão sendo renegociadas, tendo em vista a
perda do poder aquisitivo de nossos alunos e seus familiares. Todas as
medidas de readequação foram necessárias para preservar o sonho dos
futuros profissionais que aqui se formarão”, diz a nota.
Para
o SinproSP e professores ouvidos pela reportagem, a pandemia está sendo
usada pela Uninove para acelerar o processo de reestruturação baseada
na redução da folha de pagamentos e maximização dos lucros. Ainda
segundo o sindicato, o fato das demissões terem acontecido em meio à
pandemia e da instituição não ter manifestado nenhuma intenção de
negociar ou amenizar o problema, agrava ainda mais a situação.
Sem negociação
Ricardo,
professor de Comunicação, que também recebeu o aviso do seu
desligamento da Uninove na segunda-feira, chegou a pensar que tudo não
passava de um erro. Apesar de demissões pontuais acontecerem no fim dos
semestres, ele não imaginou que algo em massa pudesse acontecer em meio à
crise sanitária sem nenhum tipo de diálogo. “Foi constrangedor. Sabemos
que é um momento econômico complicado para empresas, para os alunos que
perderam emprego, mas é um momento de compreensão e de tentar amenizar a
situação. Poderiam ter discutido algum tipo de redução salarial e de
carga horária”, diz.
Ana Cristina também avalia que uma
negociação poderia ter sido utilizada e que a justificativa de
investimentos em equipamentos é uma mera desculpa. “Eles não tiveram
prejuízo, eles forneceram aos professores apenas um telefone celular e
chip com internet para alguns alunos e as mensalidades não caíram. Além
de professores, eles já tinham demitido muitos funcionários que
trabalhavam nas unidades. Eles só pensam em fechar as contas, em lucrar.
Foi cruel, fomos tratados como meros números no meio da pandemia. Ainda
querem a devolução da carteirinha do plano de saúde ilegalmente, já que
temos direito a um mês mais do benefício”.
Os próprios
alunos não entenderam o que estava acontecendo quando as aulas dos
professores demitidos foram canceladas, de acordo com a professora.
“Alguns foram direcionados para uma live de uma palestra motivacional do
Padre Fábio de Melo para mascarar a situação. Eu consegui falar com os
representantes de turma para esclarecer algo”, disse.
A
demissão em massa gerou forte crítica entre os estudantes que se
expressaram nas redes sociais em apoio aos professores. “A forma que
eles foram demitidos, por mensagem automática, sem aviso prévio foi uma
injustiça muito grande, estamos muito insatisfeitos com essa abordagem”,
afirma Maria*, uma estudante de medicina, que viu oito dos seus
professores perderem o emprego nesta semana. “Foi um semestre muito
sofrido para os professores que tiveram que se virar para se adaptar a
essa nova realidade à distância ainda mais em Medicina”, diz. A
estudante também afirmou à reportagem que o discurso de cortes não faz
sentindo em um momento em que a instituição está gastando menos com a
manutenção dos gastos fixos das instalações ―internet, luz, água― e as
mensalidades continuam iguais. “Os professores eram ótimos, é
preocupante que a qualidade de ensino caia”, diz a aluna.
Em
protesto, estudantes criaram um abaixo-assinado online para pedir a
revisão da medida, classificada por eles como uma “enorme falta de
empatia e total desrespeito da pessoa”, diz o texto. “Ainda pedimos
[para] reconsiderar, onde possível, as demissões das professoras e dos
professores, e reintegrá-los, se for pelo menos de jeito parcial, no
corpo dos docentes”, escreveram.
Retorno às aulas presenciais
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o secretário de Educação, Rossieli Soares, anunciaram nesta quarta-feira o plano de retomada da educação pública e privada “pós-covid”,
visando o retorno de 13,5 milhões de alunos às aulas presenciais do
Estado. O plano determina que as instituições poderão ser abertas a
partir do momento em que todas as cidades de São Paulo
completarem 28 dias na fase 3, a chamada fase amarela, do plano São
Paulo de flexibilização das atividades econômicas. Desta forma, a ideia é
que a retomada aconteça de forma uniforme em todas as cidades
paulistas. Até hoje, nenhum município alcançou esta etapa de flexibilização,
mas o Governo idealiza como previsão para a reabertura das escolas o
dia 8 de setembro. O MEC estendeu a autorização de aulas a distância em
universidades federais até 31 de dezembro de 2020, em substituição às
aulas presenciais. Apesar das instituições terem autonomia para definir o
formato e cronograma das aulas, a portaria dá mais segurança para que
elas mantenham o ensino à distância sem que sejam questionadas
posteriormente. Até o fechamento desta edição, a Uninove não informou
qual o cronograma para o segundo semestre.
*Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.
Fonte: El País
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