“O nível dos artigos científicos sobre a covid-19 tem sido decepcionante”
O
epidemiologista Nicholas White defende os testes com hidroxicloroquina e
prevê que pode haver uma vacina em 2021, embora de eficácia limitada
Cristian Segura
Barcelona - 06 jun 2020 - 14:16 BRT
O
canto dos pássaros e o cacarejo de algumas galinhas acompanham a
conversa telefônica com Sir Nicholas White (Londres, 1951). “Eu crio
galinhas em casa”, explica de Bangcoc o epidemiologista, um dos
principais especialistas em malária do mundo. White é professor de
Medicina Tropical da Universidade Mahidol da Tailândia e da Universidade
de Oxford. Também é um dos diretores do COPCOV, um teste clínico entre profissionais de saúde do Reino Unido
que analisa o potencial da cloroquina e de seu derivado mais popular, a
hidroxicloroquina, como remédios para evitar o contágio da covid-19.
O
recrutamento de pacientes para o COPCOV foi suspenso no final de maio
pela Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos Sanitários do Reino
Unido (MHRA na sigla em inglês), alegando riscos à saúde desse princípio
ativo. A decisão da MHRA aconteceu depois que a Organização Mundial da
Saúde (OMS) interrompeu temporariamente seu teste Solidarity, que
procura determinar se a hidroxicloroquina serve como tratamento para
pacientes com covid-19. White também assessorou a OMS no teste
Solidarity. A resolução da OMS foi justificada pela publicação de uma pesquisa na revista The Lancet que concluiu que a cloroquina e a hidroxicloroquina aumentam as chances de morrer por insuficiência cardíaca. Uma centena de cientistas, entre eles White, publicou uma carta acusando os autores do estudo de irregularidades,
falta de transparência e inconsistência na avaliação dos dados usados. A
OMS reiniciou seu teste em 3 de junho, depois de que a dúvidas sobre o
trabalho científico foram apresentadas. Até mesmo os autores do estudo
recuaram e pediram que o trabalho fosse tirado do portal da The Lancet.
Pergunta. Foi correta a decisão de interromper os testes clínicos com hidroxicloroquina?
Resposta. Não, não foi apropriada porque estava claro que havia algo errado no estudo publicado na The Lancet. Existe outro estudo, do início de maio, no The New England Journal of Medicine,
que também tomou a inusual decisão de publicar suas reservas sobre este
medicamento sem ter realizado uma análise completa. O mais estranho é
que ambos os estudos usam os mesmos dados da mesma empresa, a
Surgisphere.
P. Houve muitas advertências, não
apenas do campo científico, mas também das agências reguladoras
nacionais e internacionais. O senhor acredita que existe uma excessiva
imagem negativa da hidroxicloroquina?
R. A questão foi politizada, até a BBC a chama de “o medicamento de Donald Trump” [o presidente dos Estados Unidos, assim como o presidente Jair Bolsonaro,
defende veementemente seu uso]. A verdade é que não sabemos se é
benéfica ou prejudicial no tratamento da covid-19. Houve estudos que
detectaram benefícios, outros mostram temor em relação ao seu efeito em
cardiopatias. Como acontece com todos os medicamentos, existem riscos e
efeitos colaterais, e a única maneira de determinar seu valor é com
testes de controle randomizados [as pessoas que recebem o medicamento
são selecionadas aleatoriamente]. Mas está sendo difícil realizá-los
devido à politização e à reação exagerada das autoridades reguladoras, da OMS, embora esta já tenha mudado, do Reino Unido e da França.
P.
Essa suspeita também pode se deve ao fato de haver pesquisadores que
estão assumindo um papel popular para além de seu campo científico?
Talvez o melhor exemplo seja a popularidade do francês Didier Raoult, um
dos grandes defensores da hidroxicloroquina.
R. É
verdade, e nós, cientistas, devemos permanecer neutros. Não devemos
promover medicamentos ou criticá-los se não tivermos evidências sólidas
e, no caso de que estamos falando, ainda não as temos.
P.
Existem diferenças notáveis, em termos de risco, entre administrar
hidroxicloroquina a pacientes hospitalizados e o uso profilático desse
componente?
R. Sim. Os médicos avaliam riscos e
benefícios. Se você está hospitalizado pela covid-19, isso significa que
possivelmente tem um alto risco de morrer. Nessas condições, é mais
justificado usar doses mais altas e, portanto, é mais perigoso. Mas
insisto, não sabemos se é benéfico ou contraproducente, por isso os
testes clínicos são necessários. Os estudos existentes com doses mais
altas são o Recovery Trial do Reino Unido e o Solidarity Trial
da OMS. Os comitês de monitoramento de dados de ambos os testes estão
permitindo sua continuação porque não há sinal de que o medicamento seja
perigoso. Os benefícios seriam diferentes na administração de
cloroquina ou de hidroxicloroquina como profiláticos, para impedir o
contágio do novo coronavúírus. As doses são muito mais baixas e são as
mesmas usadas durante sessenta anos no tratamento de doenças reumáticas.
Centenas de toneladas deste medicamento são dadas todos os anos a
milhões de pessoas. Sabemos muito sobre sua segurança e tolerância.
Apresenta efeitos colaterais, mas tem boa tolerância. No campo
profilático, os riscos foram exagerados, principalmente em relação à
cardiotoxicidade. Se você tomá-lo durante muitos anos, pode ter efeitos
nos olhos e no coração, mas se tomar durante meses, não. As pessoas
foram confundidas com informações muito diferentes. O nível dos artigos
científicos sobre a covid-19 tem sido decepcionante. Houve pressa para
publicar e erros foram cometidos.
P. Recentemente surgiram opiniões médicas na Itália e na Índia que afirmam que o coronavírus está perdendo a virulência. O senhor acredita que isso é possível?
R.
O vírus está evoluindo, mas duvido que já existam informações
suficientes para apoiar esta hipótese. Declarações públicas estão sendo
feitas constantemente, todo mundo tem algo a dizer. Muita gente diz
coisas que podem ser verdadeiras, mas o que precisamos são evidências
sólidas. O problema é que a situação é notícia, você mesmo está me
entrevistando agora para falar do assunto. As pessoas gostam de aparecer
no noticiário, gostam de dizer coisas para ganhar uma manchete.
P. O senhor está otimista sobre as possibilidades de haver uma vacina no fim deste ano ou em 2021?
R.
Estou certo de que teremos uma vacina no próximo ano, inclusive
possivelmente ainda no fim deste ano. Mas a questão é quão eficaz será. É
possível que a primeira geração da vacina não seja muito boa, que não
garanta a imunidade durante muito tempo. Teremos uma vacina, mas a
grande questão é se esta vacina resolverá o problema ou se o vírus se
esquivará dela.
P. Ainda não existem avaliações
conclusivas sobre por que o vírus parece se espalhar mais facilmente em
alguns países e não em outros. Que hipótese o senhor está considerando?
R.
Não sabemos, mas existem indícios de que está relacionado à
temperatura, à umidade e à maneira de interagir de uma sociedade. O
vírus pode ser transmitido de forma mais eficaz se fizer frio e se as
pessoas mantiverem um contato muito próximo. Mas não sabemos ao certo.
Estas são perguntas que precisam de uma boa pesquisa, mas com a covid-19 está sendo muito difícil fazer uma boa pesquisa devido à politização,
ao escrutínio dos meios de comunicação e às tantas pessoas que emitem
mensagens confusas. Quando a pandemia começou, o mundo inteiro entrou em
pânico e os Governos anunciaram que iriam ajudar a pesquisa, mas muitos
Governos não o fizeram, mantiveram a mesma burocracia, os mesmos
obstáculos. Fica bem dizer que você vai apoiar os pesquisadores e que
descobrirá uma vacina, mas o que os Governos devem fazer é facilitar de
verdade a pesquisa.
R. Não sei de onde virá a próxima doença de origem animal, mas eu diria que se em muitos países, e na China em particular, se deixasse de comer os poucos animais selvagens que nos restam, o risco sem dúvida seria reduzido.
P. Qual é sua principal preocupação com o futuro da luta contra a covid-19?
R.
Sem dúvida acredito que haverá segundas, terceiras e quartas ondas, mas
não sei se serão pequenas ou grandes, ou se realmente acontecerão.
Minha principal preocupação é que o novo coronavírus se espalhe nos
países pobres, onde o sistema sanitário é frágil e a doença não poderá
ser contida como nos países ricos, onde os danos serão maiores e serão
uma reserva para a continuação de sua expansão global.
Fonte: El País
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