Cloroquina: estudo brasileiro 'padrão ouro' reforça evidências mundiais de que medicamento é ineficaz, dizem autores
Cloroquina: estudo brasileiro 'padrão ouro' reforça evidências mundiais de que medicamento é ineficaz, dizem autores
Mariana Alvim - @marianaalvimDa BBC News Brasil em São Paulo
24/07/2020
Direito de imagemGetty ImagesEm estudo clínico brasileiro, uso de
hidroxicloroquina não mostrou benefícios no tratamento para covid-19 e
foi associada a efeitos colaterais mais frequentes
Diferentes
hospitais e instituições de pesquisa brasileiros decidiram ir para o
confronto contra a covid-19 juntos e, nesta quinta-feira (23), o time
marcou o primeiro gol — e ainda fora de casa, no exterior.
Criada
para unir dados e esforços de diversas partes do país, a Coalizão
Covid-19 Brasil tem hoje nove frentes de estudo em andamento com
diferentes tratamentos em potencial para a doença causada pelo Sars-CoV-2.
Nesta quinta-feira, a coalizão publicou os primeiros resultados de uma
destas linhas, a que testou a hidroxicloroquina e ainda a
hidroxicloroquina somada à azitromicina — e revelou que estes
medicamentos não trazem melhoras no tratamento da doença. A
publicação veio no New England Journal of Medicine, considerado o
periódico médico com maior fator de impacto do mundo no relatório
Journal Citation Reports 2018, da consultoria Clarivate Analytics. O
fator de impacto é uma métrica composta por vários indicadores da
influência de uma publicação científica. O estudo
brasileiro é do tipo RCT, sigla em inglês para estudo clínico
randomizado controlado, considerado "padrão ouro" em pesquisas médicas
por seu rigor. Em trabalhos assim, participam dos testes pacientes
(clínico), divididos aleatoriamente (randomizado) em grupos — aquele que
recebe o tratamento em teste e o chamado grupo controle, que recebe
outro tratamento para comparação ou placebo (um medicamento inócuo). Neste
caso, 667 pessoas com quadros leves ou moderados de covid-19 foram
divididas em três grupos: um que recebeu hidroxicloroquina associada à
azitromicina (217 pessoas); outro que recebeu apenas hidroxicloroquina
(221 pessoas); e o grupo controle, que recebeu apenas o tratamento
padrão para a doença (229), o que fica a cargo dos médicos. A maioria
dos pacientes teve confirmação de covid-19 pelo chamado teste molecular,
ou PCR, mas alguns tiveram pelo critério clínico (sintomas avaliados
por médicos). Usando
uma escala com sete possíveis desfechos para estes casos (confira
abaixo) após o início do tratamento (com duração de sete dias), os
pesquisadores concluíram que a hidroxicloroquina sozinha ou associada à
azitromicina praticamente não fez diferença no curso da doença. Ao
15º dia após o início dos tratamentos, os pacientes foram classificados
por seu estado de saúde segundo avaliação dos médicos — em uma escala
que vai das situações mais tranquilas às mais graves por causa da
covid-19:
1. Paciente em casa sem limitações às atividades habituais;
2. Paciente em casa com limitações às atividades habituais;
3. Paciente hospitalizado sem necessidade de oxigênio;
4. Pacientes hospitalizado com necessidade de oxigênio;
5. Pacientes hospitalizado necessitando de ventilação mecânica não invasiva ou cânula de alto fluxo;
6. Paciente hospitalizado necessitando de ventilação mecânica invasiva;
7. Óbito.
Os percentuais de pacientes em cada nível da escala foram muito
semelhantes em todos os três grupos, mostrando a indiferença dos
tratamentos testados. Por exemplo, na classificação 1, a mais leve,
estavam 69% dos pacientes que receberam hidroxicloroquina e
azitromicina; 64% dos que receberam apenas hidroxicloroquina; e 68%
daqueles no grupo controle. Na faixa 7, de óbito, a distribuição foi
respectivamente 2%, 3% e 3% entre os pacientes de cada grupo. Coautor
do estudo e médico do Hospital Sírio-Libanês (um dos fundadores da
coalizão), Luciano Cesar Pontes de Azevedo afirma que esta escala é
sugerida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma métrica para
pesquisas com a covid-19, ainda mais para estudos multicêntricos como
esse — que envolveu 55 hospitais pelo Brasil. No mundo, já foram
publicados outros estudos RCT com a hidroxicloroquina e com a
cloroquina — da qual a primeira é um derivado —, mas poucos em revistas
renomadas com revisão dos pares (ou peer review, uma avaliação e
aprovação independente do trabalho por especialistas da mesma área),
envolvendo centenas de pacientes em vários hospitais ao mesmo tempo,
como é o caso do estudo brasileiro. "Um estudo multicêntrico tem a
vantagem de aumentar a reprodutibilidade do estudo — ou seja, a
capacidade do resultado ser generalizável é grande. Quando se trata de
apenas um hospital, os resultados podem estar sujeitos às
características daquele local. Já um estudo multicêntrico inclui
hospitais de excelência, outros com estruturas não tão boas... Isso
torna os resultados mais representativos da realidade", explica Azevedo,
que tem doutorado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP). Direito de imagemGetty Images'Quem vai tomar estes remédios e fazer
eletrocardiograma todo dia em casa? Isso nos preocupa', diz a médica
Leticia Kawano-Dourado sobre uso de cloroquina sem indicação médica, em
comparação com o controle que se tem em estudos clínicos
Dificuldade em encontrar pacientes que não tivessem já tomado cloroquina
A
publicação no New England Journal of Medicine mostra também que, além
de não terem mostrado benefícios, os tratamentos testados foram
associados a efeitos adversos mais frequentes, principalmente aumento do
chamado intervalo QT, um sinal de maior risco para arritmia detectado
por eletrocardiograma; e aumento de enzimas TGO/TGP no sangue, alteração
que pode indicar lesão no fígado. Leticia Kawano-Dourado, também
coautora e médica no hospital HCor (que faz parte da coalizão), explica
que a equipe acompanhou os pacientes testados muito de perto, fazendo
eletrocardiograma, exames e consultas frequentes. "O ambiente de
ensaio clínico é muito controlado para não oferecer riscos para o
paciente. Diferente da vida real. Quem vai tomar estes remédios e fazer
eletrocardiograma todo dia em casa? Isso nos preocupa", diz a médica,
referindo-se ao uso da cloroquina sem indicação médica, como tem sido
observado na pandemia. Os autores citam no artigo, inclusive, a dificuldade que tiveram
para encontrar pacientes que não tivessem já tomado a cloroquina — o
uso na véspera atrapalharia os experimentos, por isso pessoas que
tivessem tomado recentemente o medicamento não foram recrutadas. "O
estudo começou a recrutar pacientes no final de março, então pegamos a
empolgação da cloroquina. Foi muito difícil encontrar pessoas que não
tivessem tomado o remédio, em várias partes do país", conta
Kawano-Dourado, que tem doutorado em pneumologia e participou ativamente
do recrutamento de pacientes em São Paulo. A médica destaca que
artigos científicos não devem ser encarados isoladamente — mas
justamente, no conjunto de trabalhos que têm sido publicados, ela avalia
que o estudo brasileiro vai ao encontro de outros mostrando a
ineficácia e falta de segurança da cloroquina no tratamento da covid-19.
"Nosso estudo não é uma bala de prata, mas um tijolinho na construção do conhecimento sobre este tema", resume. "Estamos
vendo resultados se reproduzirem em lugares diferentes, com pacientes
diferentes, práticas clínicas diferentes. A reprodutibilidade dos
achados vai dando força (a esta intepretação). Com isso, nossos
resultados são um sinal, e não um ruído." Kawano-Dourado cita
estudos recentes refutando os benefícios da cloroquina, como um
publicado na Annals of Internal Medicine na semana passada, ou o próprio
projeto Solidarity, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e
que decidiu deixar de fazer testes com a cloroquina por seus riscos e
evidências de ineficácia. Luciano Cesar Pontes de Azevedo explica
ainda que, inicialmente, a intenção de associar a hidroxicloroquina à
azitromicina era verificar se a junção potencializava os efeitos de
ambos medicamentos. Mas, segundo ele, o fato de a dupla e nem de a
hidroxicloroqiuna mostrarem benefícios afasta ainda mais o potencial da
cloroquina para tratar a covid-19. "Havia uma discussão sobre se a
azitromicina poderia ser benéfica associada à cloroquina — mas temos
que lembrar que este estudo começou a ser desenhado em março, então
naquele momento sabíamos muito menos coisas do que hoje", diz o médico. "A
azitromicina é um antibiótico, mas tem também efeito anti-inflamatório.
Ela continua sendo usada em hospitais para a covid-19, porque é
considerada bastante segura. Mas, temos visto, como no nosso estudo, que
ela também não traz benefícios." As outras oito linhas de
pesquisa da coalizão incluem também a hidroxicloroquina, usada em
circunstâncias diferentes, como em casos mais graves; e ainda outros
medicamentos, como a dexametasona e tocilizumab. Depois desta estreia no
New England Journal of Medicine, há outras publicações da coalizão no
forno que podem sair nos próximos meses. A coalizão foi formada
pelo Hospital Israelita Albert Einstein; HCor; Hospital Sírio-Libanês;
Hospital Moinhos de Vento; Hospital Alemão Oswaldo Cruz; a Beneficência
Portuguesa de São Paulo; o Brazilian Clinical Research Institute (BCRI);
e a Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet). O
estudo foi financiado pela coalizão e pela farmacêutica EMS Pharma e
passou por aprovações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Fonte: BBC
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