O que detonou o 'Chernobyl mexicano', o maior incidente nuclear das Américas

O que detonou o 'Chernobyl mexicano', o maior incidente nuclear das Américas

Darío Brooks da BBC News Mundo
16/11/2020

CRÉDITO,BBC/CNSNS
Ciudad Juárez, no México, viveu um perturbador alerta de radiação na década de 1980

A ativação de alarmes em um centro de pesquisa nuclear no sudoeste dos Estados Unidos foi a primeira indicação de que algo estava errado.

Na rodovia que passa pelo Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México (Estados Unidos), viajava em janeiro de 1984 um caminhão de carga que acionou os detectores de radiação daquele local, onde foi fabricada a primeira bomba atômica.

Uma câmera externa ajudou a detectar que o veículo, que estava passando ali por simples coincidência, tinha um alto nível de radiação.

A investigação de sua origem chegou a Ciudad Juárez, no México, onde inadvertidamente já estava em andamento o maior incidente nuclear desse tipo nas Américas, dada a extensão que atingiria.

Embora não tenha comparação com a explosão de um reator nuclear, o episódio passou a ser chamado de "Chernobyl Mexicano". A contaminação que causou no México provoca comparações com o acidente na União Soviética.

E o que aconteceu foi que milhares de toneladas de haste de construção foram contaminadas com cobalto-60 e esse material foi comercializado em 17 dos 32 estados do México.

O outro grande incidente de radiação na América Latina foi em 1987, em Goiânia, no Brasil, com césio-137, uma substância altamente radioativa. Foram pelo menos quatro mortes e várias pessoas com doenças crônicas.

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Ciudad Juárez, no México, e Goiânia, no Brasil, foram palco dos maiores incidentes de radiação no continente

No caso do México, cerca de 4 mil pessoas tiveram algum grau de exposição.

Apesar do número elevado, até o momento não há certeza de quantas vítimas com doenças de longa duração o incidente de 1984 deixou. Também não houve acompanhamento pelas autoridades de saúde das pessoas mais expostas.

"(Houve) uma grande aberração no manuseio de material radioativo", diz Gerardo Espinosa, físico da Universidade Nacional Autônoma do México, que participou da investigação acadêmica do caso.

Como mostra a documentação do caso, vários foram os erros que geraram a crise de contaminação dessa magnitude.

Compra inutilizada e não relatada
Uma investigação pela Comissão Nacional de Segurança Nuclear e Salvaguardas (CNSNS) publicada em 1985 descreve como a situação começou.

Em 25 de novembro de 1977, o Centro Médico Especializado de Ciudad Juárez adquiriu uma unidade de tratamento com cobalto-60 fabricada nos Estados Unidos.

Embora sua importação exigisse licença, o CNSNS afirma que o material "nunca foi notificado" às autoridades e, portanto, não era autorizado.

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O cobalto-60 tem sido usado para radioterapia desde meados do século 20 até os dias atuais

Ao mesmo tempo, o hospital nunca teve uma equipe treinada para utilizá-lo, por isso o armazenou indefinidamente em um espaço da clínica onde "os requisitos mínimos" de segurança não eram cumpridos, segundo a CNSNS.

"O cobalto é um material radioativo produzido em reatores e é usado para aplicações em física médica, para radioterapia. Hoje os hospitais continuam a usar cobalto-60 para pacientes com câncer", explica Espinosa.

Extraído do hospital como 'sucata'
Seis anos se passaram até que, em dezembro de 1983, o técnico de manutenção Vicente Sotelo Alardín inadvertidamente iniciou o incidente na clínica.

O operário "desmontou a cabeça da unidade e extraiu de lá um cilindro cujo interior continha cobalto-60. A operação foi feita sem nenhuma ajuda", relata a investigação.

"O objetivo era vender as peças como sucata."

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Sotelo perfurou a fonte blindada de cobalto-60, causando o vazamento de material radioativo

Como o cilindro com a fonte radioativa pesava cerca de 100 kg, Sotelo Alardín pediu ajuda a um amigo, Ricardo Hernández, para transportar o material em uma caminhonete.

Eles viajaram para uma loja de sucata chamada Yonke Fénix, no sul de Ciudad Juárez, onde venderam o material.

No entanto, a maneira como o dispositivo foi perfurado e transportado fez com que o incidente tivesse consequências ainda mais graves.

"A verdade é que nunca nos disseram que aquela máquina estava contaminada. Muitas coisas ficaram para trás: aparelhos de ventilação, berços e tudo mais e, na verdade, não havia nenhuma placa com uma caveira ou coisa parecida", disse Sotelo Alardín à revista Proceso em 1984.

Segundo o hospital, o trabalhador pegou o dispositivo sem autorização, mas Sotelo Alardín afirmou que o chefe de manutenção do hospital lhe disse que poderia levá-lo consigo.

Trilha de radiação por Ciudad Juárez
O trabalhador perfurou o cilindro que continha 6 mil grânulos de cobalto-60 e uma quantidade indefinida deles estava espalhada na caminhonete usada, no pátio da Yonke Fénix, nas gruas e demais veículos comerciais e até em ruas de Ciudad Juárez.

Mas os dois grandes focos de radioatividade foram a caminhonete e o ferro-velho.

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Os grânulos de cobalto-60 são minúsculos, mas representam uma fonte em decomposição de radioatividade por até 35 anos

"Conseguiu-se estabelecer que, até 14 de dezembro de 1983, a sucata contaminada com cobalto-60 já havia sido utilizada pelas fábricas de produtos siderúrgicos, nas fundições", diz a investigação, que indica que a empresa Aceros de Chihuahua SA (Achisa) como principal compradora de ferro.

Descoberta por acaso
Em 16 de janeiro de 1984, ocorreu a detecção do caminhão de carga que passava próximo ao Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México (Estados Unidos).

Quando as autoridades norte-americanas verificaram as câmeras e viram que era o veículo usado pela Achisa, notificaram o governo do México.

A partir daí, os especialistas foram puxando o fio até encontrar a origem do problema e o risco de contaminação que se gerava: "foi comprovada a existência de ampla dispersão de material radioativo".

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No Laboratório Nacional de Los Álamos, o caminhão foi detectado com radiação

Espinosa explica que esse material radioativo "tem meia-vida de 5 anos" e a partir daí a fonte vai perdendo a intensidade progressivamente.

"Se você tem 100 átomos radioativos, em 5 anos você terá 50, em outros 5 anos nada mais que 25. Eles são considerados como tendo 7 meias-vidas, ou seja, uma vida ativa de quase 35 anos", então em 1984 o cobalto-60 do incidente já havia perdido metade de seu poder.

A caminhonete estacionada
A investigação constatou inicialmente que havia contaminação não só nas instalações da Yonke Fénix e Achisa, mas também na área de manutenção e na central telefônica do hospital de origem, na caminhonete do hospital a cargo de Sotelo Alardín e na rua onde fora estacionada, bem como em uma maquiladora de produtos siderúrgicos chamada Falcón de Juárez.

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A fonte de cobalto-60 foi encontrada no site de compra e venda de sucata Yonke Fénix

Além de estabelecer "blindagem" ao redor dos locais investigados e proteger as hastes e produtos contaminados, foi essencial rastrear a presença dos grânulos de cobalto-60 soltos, com auxílio de equipamentos especializados, inclusive um helicóptero com detector que varreu as ruas de Ciudad Juárez.

A pequena caminhonete Datsun, estacionada durante semanas (devido a uma pane) em um bairro residencial próximo à fronteira com os Estados Unidos, onde morava Sotelo Alardín, também era uma fonte de contaminação preocupante: as leituras do nível de radiação chegavam a 1.000 R/h.

"Isso é considerado alto e, em uma exposição de uma hora ao corpo inteiro, a pessoa pode morrer. Mas se o motorista e o passageiro estivessem na cabine durante o transporte da fonte, devem ter recebido uma exposição de aproximadamente 4,7 R/h que pode ter causado vômitos horas depois e vermelhidão na pele durante a semana", diz Epifanio Cruz, da UNAM, à BBC News Mundo.

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Os grânulos foram espalhados pelas instalações de comercialização de ferro

"Por se tratar de uma área densamente povoada, considerou-se urgente levar a caminhonete contaminada para um local que apresentasse as características de não ser povoado ou de ser muito distante", diz o relatório da CNSNS.

A manobra foi cuidadosamente planejada e executada em 10 minutos. O veículo foi levado ao parque El Chamizal, ao lado da fronteira com os Estados Unidos.

"Fomos fazer medições de radiação. Uma mulher sentava-se ao lado do caminhão todos os dias. Ninguém descobriu que havia uma fonte radioativa. E esse foi o problema", lembra Espinosa sobre o trabalho feito pela UNAM.

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A população pouco sabia sobre a situação, explica Espinosa

"Ninguém sabia que havia material radioativo, nem no hospital, nem no traslado, nem na caminhonete", acrescenta.

O material retirado de Ciudad Juárez
A degradação natural do cobalto-60 fez com que a fonte de radiação passasse de 3.000 curies (Ci) em 1977 para 450 Ci em fevereiro de 1984.

"Com menos de 500 pode haver efeito, mas não muito. Depende do tempo de exposição. Por isso os danos à população foram muito baixos", explica Espinosa.

Além de Yonke Fénix e Achisa, a investigação da CNSNS detectou que três empresas que comercializaram materiais ferrosos nas cidades de Monterrey, Gómez Palacio e San Luis Potosí registravam contaminação.

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Cerca de 6.600 toneladas de vergalhão foram feitas de ferro contaminado, de acordo com a investigação

Até mesmo em uma rodovia que liga Ciudad Juárez a Chihuahua, havia vestígios de material radioativo. Tudo isso exigia uma tarefa cuidadosa de detecção e proteção de grânulos e objetos contaminados.

No total, 6.600 toneladas de hastes e 3.000 bases metálicas para mesas estavam contaminadas.

A haste foi comercializada em 17 dos 32 Estados do México. De 17.600 prédios inspecionados, 814 tiveram que ser demolidos, de acordo com o relatório.

"Pediram à UNAM que medisse as hastes em pilares dos edifícios. O seu nível já não era importante, mas por lei esse material tinha de ser detectado. E houve um escândalo governamental porque foi pedida a demolição", lembra Espinosa.

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Grânulos de cobalto-60 foram detectados até em uma rodovia pela qual passou um veículo com ferro contaminado

O especialista explica que, embora o nível de exposição não fosse mais arriscado, as normas internacionais exigem que 90% do material contaminado seja protegido e descartado.

4 mil pessoas expostas
A investigação indica que cerca de 4 mil pessoas foram "expostas à radiação", das quais 80% receberam doses abaixo de 500 rems. Isso é equivalente ao que uma pessoa pode receber se estiver perto de um paciente que recebeu tratamento de radiação.

Outros 18% receberam entre 0,5 e 25 rems, enquanto 2% (ou cerca de 80 pessoas) foram expostas a mais de 25 rems. Ao todo, cinco pessoas foram expostas a doses entre 300 e 700 rems em um período de dois meses, segundo a CNSNS.

"Para as cinco pessoas expostas a doses entre 300 e 700 rem, foi mais do que suficiente para afetar gônadas, glândulas tireoide e ossos superficiais, por exemplo nas mãos e pés, encurtando a qualidade de vida", explica o Cruz.

"O efeito dessas doses pode levar a danos ao material genético hereditário por pelo menos duas gerações, causar esterilidade e falta de espermatozoides na pessoa exposta, que podem ser recuperados depois de pelo menos cinco anos", acrescenta.

Pesquisa publicada em 1985 apresenta relatório médico, mas pouco se descreve sobre os problemas de saúde detectados em pessoas expostas.

Nada se informa sobre Vicente Sotelo Aldarín, mas ele mesmo disse à revista Proceso, meses depois, que tinha desconfortos que depois desapareceram: "pensaram que era diabetes".

Após o incidente, pouco se ouviu do trabalhador. Espinosa diz que "o homem estava perdido".

Os trabalhadores da Yonke Fénix "disseram não ter passado por episódios de vômitos, cansaço ou náuseas e não tinham marcas visíveis nos pés ou nas mãos", com exceção de alguma pigmentação e algum desconforto temporário, segundo a CNSNS.

Quatro trabalhadores, o filho de um deles e um cliente tiveram leucopenia, que é uma diminuição da concentração de leucócitos no sangue.

Mas depois de alguns meses os funcionários da Achisa "reclamaram de fortes dores de cabeça, vômitos e diarreia", relatou a Processo na época.

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Sotelo Aldarín garante que não houvia nenhum alerta de risco na máquina

Ricardo Hernández, que ajudou a mover a unidade, teve "uma queimadura atribuível à radiação em processo de cicatrização, sem quaisquer outros sintomas".

"Em nenhum dos casos foram detectados sintomas agudos", segundo a pesquisa da época. Não houve relatos de mortes conhecidas.

A BBC Mundo pediu à CNSNS uma atualização sobre as consequências médicas ocorridas, mas a instituição disse que o que estava contido no relatório de 1985 é o único material disponível: "não temos mais registros daquela época".

Como indicam vários relatos da época, não havia acompanhamento de saúde das vítimas, por isso não se sabe ao certo se as pessoas expostas tiveram mais doenças ou câncer, que é uma das consequências da exposição à radiação.

O 'cemitério' radioativo
Encontrar um local para colocar o material radioativo era o problema seguinte a ser resolvido: deveria ser num local longe da população, com pouca chuva, sem contato com fontes de água e com o menor risco de contaminação ao meio ambiente.

"Levaram o material radioativo de um lugar para outro por quase um ano em caminhões para ver onde o enterrariam. Foi uma desordem total", lembra Espinosa.

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Em um espaço deserto conhecido como La Pedrera, o cemitério de resíduos foi escavado

Depois de várias tentativas sem sucesso de conseguir um terreno, devido à oposição de moradores e autoridades locais, o governo mexicano realizou uma escavação em uma área deserta no sul de Ciudad Juárez chamada "La Pedrera".

Lá foram levadas as hastes e outros materiais feitos com ferro contaminado, como a caminhonete de Sotelo Aldarín. Tudo foi enterrado com concreto para neutralizar seus efeitos nocivos.

No entanto, reportagens da imprensa local e nacional mostram que aquele "cemitério" de lixo radioativo que deveria ser protegido foi abandonado.

A CNSNS disse à BBC News Mundo que "atualmente calcula-se que a concentração de atividade apresenta níveis praticamente inócuos, próximos dos níveis de dispensação".

"Portanto, pode-se afirmar que a existência do aterro La Piedrera não representa nenhum risco radiológico para a população ou para o meio ambiente", acrescenta.

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O caminhão dirigido por Sotelo Aldarín foi enterrado no depósito de lixo

A mídia local tem denunciado que o local carece de vigilância e que houve até incursões de pessoas em busca de objetos para comercializar.

Para o físico Guillermo Espinosa, é verdade que a meia-vida já ultrapassada ajudou a evitar que fosse um risco hoje: "mas acho que (o local) foi muito mal administrado", pondera.

"A radioatividade é como o fogo: se você manuseia bem, você cozinha bifes excelentes. Se você não manuseia bem, há queimaduras", continua ele.

"A lição a ser aprendida é que qualquer fonte de radiação deve ser controlada, certificada e sempre deve haver um responsável. O que não aconteceu lá."

Fonte: BBC

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