ccu cgg cgg gca: As doze letras que mudaram o mundo
Manuel Ansede|ARTUR GALOCHA|Mariano Zafra
14 may 2020 - 11:55 BRT
O
temível inimigo que obrigou bilhões de pessoas a se esconderem em suas
casas é uma minúscula bolinha de 70 milionésimos de milímetro. O novo coronavírus,
chamado pelos cientistas de SARS-CoV-2, é tão pequeno em comparação ao
ser humano como uma galinha com relação a todo o planeta Terra. Esse é o grande adversário da humanidade.
O vírus é apenas uma brevíssima mensagem escrita com combinações das
mesmas quatro letras. Cada uma delas é a inicial de um composto químico
com diferentes quantidades de carbono, hidrogênio, nitrogênio e
oxigênio. Com estas quatro letras (a, u, g, c) está escrito o texto que
matou mais de 298.000 pessoas em todo o planeta desde que sua existência foi detectada, há pouco mais de quatro meses.
Um vírus assombroso
O SARS-CoV-2 é insólito. Os vírus respiratórios infectam habitualmente a garganta
ou os pulmões. Os que se concentram na garganta provocam sintomas mais
leves, mas se espalham muito facilmente. Os vírus que entram nos pulmões
causam doenças mais graves, mas são muito menos contagiosos. O
SARS-CoV-2 é ao mesmo tempo muito contagioso e potencialmente muito
virulento.
A cabeça do Demogorgon
Ao
microscópio, o novo coronavírus parece um mangual, a bola metálica com
pontas agudas usada como arma durante a Idade Média. Mas, dando zoom
numa destas espículas do vírus, a imagem é ainda mais horripilante. No
laboratório do bioquímico norte-americano Greg Bowman, os cientistas se referem a esta proteína protuberante como “o Demogorgon”, o monstro da série Stranger Things: uma criatura com corpo humanoide e a cabeça como uma planta carnívora que devora a sua presa.
Bowman dirige o Folding@home,
um projeto que utiliza a potência dos computadores de um milhão de
voluntários para recriar o comportamento da espícula do vírus. “O feroz
Demogorgon abre suas mandíbulas para apanhar a sua presa”, descreve com
dramatismo Bowman, professor da Universidade de Washington. A presa do
Demogorgon é o receptor ACE2, a fechadura da célula humana que o vírus
da SARS, embora de maneira muito menos eficiente, já utilizava em 2002. A
chave do novo coronavírus se une a esta fechadura com uma afinidade até
20 vezes maior que
o vírus da SARS. Mas há outro fator que parece ainda mais decisivo para
explicar por que aquele SARS-CoV-1, irmão do atual, matou menos de 800
pessoas, enquanto o SARS-CoV-2 já matou mais de 298.000: a furina.
A preativação para a invasão
O coronavírus utiliza sua espícula como uma chave com duas partes.
“Acreditamos
que esta inserção [das 12 letras] permita que o vírus entre em uma
maior variedade de células. Isto, provavelmente, favorece a disseminação
do vírus nos pacientes infectados e, portanto, provavelmente é chave
para o desenvolvimento da doença”, afirma o virologista francês Etienne Decroly, da Universidade do Aix-Marselha.
Decroly deu a voz de alarme em 10 de fevereiro, quando muitos ainda viam a epidemia como um exótico problema da longínqua cidade de Wuhan. Naquela época, apenas uma pessoa havia morrido de covid-19
fora da China. Mas a espícula do novo vírus, advertiu Decroly, tinha
algo que a tornava diferente das espículas de outros coronavírus
similares. Esse ponto de corte pela furina podia transformá-lo em uma
arma letal. “É uma das razões pelas quais o SARS-CoV-2 é tão
transmissível”, concorda Fang Li, virologista da Universidade de Minnesota que acaba de publicar na revista científica PNAS as "surpreendentes estratégias” do vírus para entrar nas células humanas burlando o sistema imunológico.
O virologista Robert Garry estuda há mais de três décadas as proteínas dos vírus emergentes. O furacão Katrina arrasou em 2005 seu laboratório da Universidade Tulane,
em Nova Orleans, onde guardava as amostras de alguns dos primeiros
casos confirmados do vírus da Aids. Agora ele investiga os truques do
novo coronavírus. “A aquisição [por mutações naturais] de um ponto de
corte por furina nos vírus de gripe aviária de baixa patogenicidade é
justamente o que os transforma em vírus de alta patogenicidade”, adverte
Garry, que quer confirmar suas suspeitas em estudos com animais.
A equipe de Stefan Pöhlmann investiga o vírus no Centro de Primatas da Alemanha, uma instalação científica com mais de 1.200 macacos
na cidade de Göttingen. “Nossos dados indicam que o SARS-CoV-2 precisa
do ponto de corte por furina para poder entrar de maneira eficiente nas
células pulmonares humanas”, afirma Pöhlmann, que até o momento publicou apenas resultados obtidos em cultivos celulares em laboratório.
O pesquisador alemão, experiente no trabalho com vírus letais como o
ebola, acredita que a implicação da furina permite também que o vírus
invada células do aparelho digestivo e dos rins, não só as do sistema
respiratório. O próprio ebola, o vírus do dengue e o da Aids também
utilizam a furina em seus ataques às células humanas. "A furina está em
todos os tipos celulares", salienta a virologista Margarida del Val, do Conselho Superior de Pesquisa Científica (CSIC) da Espanha.
A
furina só foi descoberta em 1990, mas tem um papel fundamental no corpo
humano. Suas tesouradas ativam os precursores de muitas das proteínas
que fazem os trabalhos básicos para a vida. É uma enzima essencial para o
vírus, mas também para a pessoa. “Inibir a furina geraria efeitos
tóxicos nas células. Poderia ser um alvo para medicamentos contra a
Covid-19, mas não parece o mais ideal”, reflete o virologista colombiano
Javier Jaimes, cujo grupo na Universidade de Cornell (EUA) busca um
calcanhar-de-Aquiles do SARS-CoV-2 para atacá-lo com fármacos.
De onde saem estas 12 letras?
A origem do SARS-CoV-2 ainda não é conhecida, mas os cientistas apontam várias possibilidades:
A
análise dos genomas dos coronavírus mais semelhantes mostra que só o
SARS-CoV-2 possui as 12 letras que permitem que sua espícula seja
ativada pela furina, facilitando a invasão de diversos tipos de células
O
presidente norte-americano, Donald Trump, já abonou a teoria de que o
vírus teria escapado do Instituto de Virologia de Wuhan, situado a cerca
de 14 quilômetros do mercado de animais vivos que ficou famoso como
possível origem da pandemia. Em laboratórios avançados de todo o mundo,
incluído o de Wuhan, são feitas os chamados experimentos de ganho de
função: gerar mutações em vírus para que se tornem mais contagiosos,
mais nocivos e mais resistentes aos tratamentos. O objetivo desses
frankensteins é acelerar vacinas e medicamentos para se antecipar às
próximas pandemias. Não é um delírio pensar em uma fuga, mas não há
nenhuma prova de que tenha ocorrido.
O virologista
norte-americano Jack Nunberg fez um destes polêmicos experimentos em
2006. Pegou o vírus SARS-CoV-1 e inseriu nele, precisamente, um ponto de
corte por furina. Entretanto, ele hoje acredita que o SARS-CoV-2 é
fruto de processos naturais. O novo coronavírus, argumenta, apresenta
múltiplas mudanças em seu genoma com relação aos demais coronavírus
conhecidos, não só as 12 letras. O vírus mais parecido é o RaTG13, de
morcegos, que só compartilha 96% de seu genoma com o atual SARS-CoV-2.
Calcula-se que ambos divergiram de um ancestral comum há 52 anos. Em
termos evolutivos, esta semelhança é “mais ou menos a que existe entre
uma pessoa e um porco”, nas palavras do geneticista Rasmus Nielsen, da
Universidade de Califórnia em Berkeley.
A possibilidade
de que alguém introduzisse todas essas mudanças em um laboratório é
“descabida, mas não impossível”, argumenta Nunberg, hoje diretor do
Centro de Biotecnologia de Montana. “Infelizmente, embora não confie na
transparência da China, confio menos ainda nos teóricos da conspiração,
incluído meu estimado presidente. Não acredito que ninguém saiba o
suficiente para desenhar de propósito um novo vírus que tenha tanto
sucesso”, opina. Os vírus, recorda, estão em mutação o tempo todo. E um
só ser vivo infectado pode ter até um trilhão de partículas virais
infectantes de um determinado vírus em seu corpo. “Nunca subestime a
capacidade de um vírus para se adaptar. É como os mil macacos com
máquinas de escrever que, ao acaso, podem redigir uma obra de
Shakespeare. Estas coisas acontecem”, conclui Nunberg.
Fontes:
Stefan Pöhlmann (Centro de Primatas da Alemanha), Margarida del Val
(CSIC), Javier Jaimes (Universidade de Cornell), Etienne Decroly
(Universidade do Aix-Marselha), Fang Li (Universidade de Minnesota),
Greg Bowman (Universidade de Washington).
Fonte: El País
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