sexta-feira, 25 de setembro de 2020

‘O coronavírus pode deixar um legado positivo': a visão de 3 grandes pensadores sobre a pandemia de covid-19

‘O coronavírus pode deixar um legado positivo': a visão de 3 grandes pensadores sobre a pandemia de covid-19

BBC
30 agosto 2020
Grandes pensadores imaginam o futuro do mundo após a covid-19

Não há dúvida de que o coronavírus é um desastre global que está ceifando centenas de milhares de vidas e devastando economias. Quando for finalmente controlado, nenhum país e nenhuma comunidade sairá imune. Paradoxalmente, alguns acreditam que algo positivo poderia resultar dessa tragédia.

Se há alguma certeza sobre a atual pandemia é que grandes mudanças estão chegando, algumas das quais já estamos sentindo, mas apenas começando a entender.

Temos a capacidade de nos antecipar essas mudanças? Como poderíamos moldá-las para o benefício da humanidade? Em meio à crise atual, temos oportunidade de conceber o mundo de outra forma? Como será em termos de instituições governamentais, economia e meio ambiente?

A BBC pediu a três pensadores de renome mundial para compartilharem suas opiniões sobre os desafios e oportunidades que resultarão desta pandemia.

Yuval Noah Harari: O historiador e filósofo israelense, autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade", que vendeu mais de 27 milhões de cópias, aborda o dilema da tecnologia que foi desenvolvida para combater a covid-19 e como isso poderia levar ao "melhor sistema de saúde da história", mas também abrir as portas para uma nova era de vigilância invasiva e opressora.

Rebeca Grynspan: A economista e ex-vice-presidente da Costa Rica argumenta que, embora todos os países enfrentem dificuldades financeiras, os chamados de "renda média" sofrerão o pior impacto. Ele exorta as nações ao redor do mundo a se unirem, "abandonando seus interesses políticos e econômicos" para proteger e apoiar as nações mais vulneráveis e os 5 bilhões de pessoas que vivem nelas.

Jared Diamond: O antropólogo e historiador americano, mais conhecido por seu livro vencedor do Prêmio Pulitzer Guns, Germs and Steel (Armas, Germes e Aço), prevê o surgimento de uma cultura de cooperação internacional, fomentada pela resposta global à crise.

Estas são as suas opiniões. Confira.
Yuval Noah Harari - Historiador, autor de "Sapiens: Uma Breve História da Humanidade"

"A crise da covid-19 pode ser um marco, uma virada significativa na história da vigilância, porque a vigilância está sendo revolucionada. Está se transformando de uma vigilância da pele em uma vigilância subcutânea."

O historiador destaca que, até agora, governos e empresas se concentravam em monitorar o que acontecia na superfície, "acima da pele". Em outras palavras, para onde vamos, quem encontramos, o que compramos.

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Até agora, vigilância se concentrava no que acontece 'fora da pele': nossos movimentos, o que fazemos, quem encontramos

Agora, como resultado dessa epidemia, estamos nos concentrando cada vez mais sobre o que acontece dentro do corpo.

"Essas observações podem dizer a eles se estamos doentes ou não, mas também pode dizer a eles como nos sentimos. Porque os sentimentos, como as doenças, são fenômenos biológicos."

Harari explica que a vigilância direta pode informar o governo sobre praticamente todas as suas atividades: os sites que você visita no computador, as pessoas com quem fala ao telefone, inclusive se você está lendo esta reportagem.

Mas, se você usar uma pulseira biométrica que monitora o que está acontecendo por via subcutânea - como as que registram o metabolismo, a temperatura etc. -, o governo também pode saber o que você está sentindo enquanto lê esta reportagem.

Pelos sinais que suas funções biológicas emitem, pode-se deduzir se você acredita no que está lendo, se manifesta ceticismo, se algo o incomoda, inclusive se sente medo. É uma tecnologia "de dois gumes", diz Harari.

"A vigilância subcutânea pode criar o melhor sistema de saúde do mundo, um sistema que detecta uma doença antes que você saiba que a tem. Mas também pode dar lugar ao pior regime totalitário que já existiu, um regime que sabe mais sobre nós do que nós mesmos."

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Uma pulseira inteligente registra o que acontece dentro do corpo

Seria um regime que entende sua personalidade melhor do que sua própria mãe ou sua sexualidade melhor do que seu parceiro. "Uma pulseira biométrica que monitora você 24 horas por dia pode facilmente distinguir se você é gay ou hétero e se você gosta ou não do governo."

Claro que nada disso é inevitável, diz ele, já que a tecnologia não é determinística. A existência de tal regime totalitário depende das decisões que tomarmos no futuro. "Espero que todos nós façamos as escolhas mais sábias", conclui.

Rebeca Grynspan - Economista, ex-vice-presidente da Costa Rica
"Alguns dizem que o coronavírus não discrimina, que afeta a todos nós igualmente. Mas isso é apenas parcialmente verdade."

Rebeca Grynspan ressalta que as pessoas sofrem e se recuperam de forma diferente do vírus devido às persistentes desigualdades no mundo. Ele está se referindo aos chamados países de "renda média", que serão particularmente atingidos, em sua visão.

"Esses países representam um terço do produto bruto do planeta, 75% da população mundial e 62% dos pobres."

Mas, em comparação com as nações ricas, esses países têm sistemas de saúde e proteção social mais fracos, com menos profissionais médicos e uma alta porcentagem de pessoas em risco.

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Países de renda média têm sistemas de saúde e proteção social mais fracos, diz Grynspan

Para a Grynspan, os resultados seriam desastrosos para todos se os países de renda média fossem deixados para trás. "O mundo não pode arriscar uma recessão que poderia afetar mais de 5 bilhões de pessoas."

Ela ressalta que "este é talvez o momento mais crítico que as instituições internacionais enfrentaram desde a 2ª Guerra Mundial". "Não podemos deixar passar mais um minuto", alerta.

Jared Diamond - Antropólogo, vencedor do Prêmio Pulitzer
Um dos temas que Jared Diamond aborda em seu livro Guns, Germs and Steel é o desenvolvimento de populações humanas densas e estratificadas, organizações políticas centralizadas e epidemias de doenças infecciosas.

Sobre este último elemento, Jared diz que, desde antes do coronavírus, "o mundo enfrenta (e principalmente ignora) outros problemas globais como as mudanças climáticas e o esgotamento dos recursos naturais".

No entanto, o antropólogo destaca que o mundo não tem adotado estratégias bem-sucedidas globalmente contra esses problemas, porque, para nós, eles não representam ameaças iminentes claras, como a covid-19.

As mudanças climáticas não são vistas como uma ameaça iminente, diz Diamond, mas vão matar mais pessoas do que a covid-19.

"A covid-19 é uma ameaça clara e iminente. Ela mata rapidamente. Portanto, prevejo que a covid-19 nos forçará a adotar uma campanha global como a que já teve sucesso com a eliminação da varíola em 1980."

O historiador diz acreditar que as mudanças climáticas acabarão matando muito mais pessoas, mas esta não é um "vilão óbvio", porque não mata rapidamente.

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Mudança climática não é vista como ameaça iminiente, diz Diamond

"Espero e prevejo que o mundo aprenderá com uma campanha bem-sucedida contra a covid-19 e que continuaremos com campanhas bem-sucedidas contra questões globais maiores, porém mais sutis, como as mudanças climáticas."

"Se isso acontecer, a tragédia da covid-19 pode resultar em um grande legado positivo", conclui.

Fonte: BBC

Capes e Serviço Alemão de Intercâmbio abrem inscrições para doutorado

Capes e Serviço Alemão de Intercâmbio abrem inscrições para doutorado

Interessados devem preencher formulário online 

Karine Melo – Repórter da Agência Brasil - Brasília
15/09/2020 - 10:53
© Marcello Casal JrAgência Brasil

Estão abertas até as 17 horas do dia 16 de outubro as inscrições no Programa Capes/Daad, que oferta bolsas de doutorado na Alemanha com valor total de até €116.360,00. Interessados devem preencher formulário online na página da Capes. A iniciativa é uma parceria entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Serviço Alemão de Intercâmbio (Daad). O resultado final está previsto para março de 2021.

Serão até 45 bolsas, das quais a Capes financiará um máximo de dez —até duas de doutorado pleno, de até €116.360,00, até três de doutorado-sanduíche com cotutela, de até €46.180,00, e até duas de doutorado-sanduíche sem cotutela, de €23.730,00. O restante das bolsas (35) serão financiadas pelo Daad. Os valores dos benefícios concedidos pela agência alemã seguem as normas daquele país, que podem ser conferidas aqui, aqui e aqui.

Pré-requisitos
Interessados nas bolsas devem seguir as normas do Daad, bem como o Regulamento Geral de Bolsas no Exterior da Capes. Outros pré-requisitos incluem ser brasileiro ou estrangeiro com visto permanente no Brasil, não ter título de doutor, não receber ou ter recebido bolsa para a mesma modalidade, não acumular bolsas e possuir confirmação formal de orientação de instituição alemã.
Benefícios

Os benefícios para os bolsistas incluem mensalidades, passagens ou auxílio-deslocamento, auxílio-instalação, seguro-saúde, adicional de localidade (quando cabível) e auxílio-dependente. Ainda serão financiadas taxas acadêmicas e administrativas para os estudantes de doutorado pleno. Para orientadores brasileiros e alemães, serão pagas diárias e passagens ou auxílio-deslocamento.

Programa
O Programa Capes/Daad apoia a formação de professores e pesquisadores de alto nível estimulando a cooperação acadêmica e o intercâmbio científico entre universidades alemãs e brasileiras.
Edição: Lílian Beraldo

Fonte: EBC

'Chernobyl no fundo do oceano': a difícil tarefa de retirar submarinos nucleares soviéticos do mar de Barents

'Chernobyl no fundo do oceano': a difícil tarefa de retirar submarinos nucleares soviéticos do mar de Barents

Alec Luhn BBC Future Planet
13 setembro 2020

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O K-159 é um dos muitos submarinos soviéticos que ainda estão presentes nas águas do Ártico

Por tradição, russos sempre levam uma quantidade ímpar de flores a alguém vivo, e uma par a túmulos ou memoriais. Mas dia sim, dia não, Raisa Lappa, de 83 anos, coloca três rosas ou gladíolas na placa em homenagem a seu filho Sergei, como se ele não tivesse ido embora junto com seu submarino numa trágica operação no oceano Ártico em 2003.

"Há momentos em que eu não estou normal, enlouqueço e parece que ele está vivo, então levo um número ímpar de flores", afirma ela. "Eles deveriam resgatar a embarcação, para que as mães possam colocar os restos mortais de seus filhos sob o chão, e possamos ter um pouco mais de paz."

Após 17 anos de promessas não cumpridas, Lappa pode finalmente realizar seu desejo, embora isso seja por causa de preocupações do governo com os restos mortais do capitão Sergei Lappa e seis membros de sua tripulação.

Com um decreto publicado em março, o presidente Vladimir Putin deu início a uma iniciativa para retirar dois submarinos nucleares soviéticos e quatro compartimentos de reatores do fundo do mar, reduzindo em 90% a quantidade de material radioativo no oceano Ártico.

O primeiro da lista é o K-159, onde está Lappa.

A mensagem, que antecede a presidência rotativa da Rússia no Conselho do Ártico no próximo ano, aponta um país que não é apenas uma potência comercial e militar proeminente no Ártico como também um gestor do meio ambiente.

O K-159 fica próximo a Murmansk, no mar de Barents, a mais rica região de bacalhau do mundo e também um importante habitat de hadoque, caranguejo-rei vermelho, morsas, baleias, ursos polares e muitos outros animais.

Ao mesmo tempo, a Rússia está à frente de outra "nuclearização" do Ártico com embarcações e armamentos, e já causou dois acidentes.
Legado em decadência

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética construíram mais de 400 submarinos nucleares, um "serviço silencioso" que deu aos adversários uma forma de retaliar, mesmo que suas instalações de mísseis e bombardeiros estratégicos tivessem sido destruídos em um primeiro ataque repentino.

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O custo de reflutuar submarinos afundados com material radioativo pode chegar a centenas de milhões de dólares

A quase 100 km da fronteira com a Noruega, membro da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o porto ártico de Murmansk e as bases militares vizinhas se tornaram o centro da marinha nuclear e dos quebra-gelos da URSS, bem como de seu combustível altamente radioativo.

Depois da queda da Cortina de Ferro, com o fim da URSS em 1989, as consequências da atividade vieram à tona.

Na baía de Andreyeva, por exemplo, onde 600 mil toneladas de água tóxica vazaram para o mar de Barents de uma piscina de armazenamento nuclear em 1982, o combustível irradiado de mais de 100 submarinos foi mantido parcialmente em recipientes enferrujados a céu aberto.

Temendo contaminação, a Rússia e os países ocidentais, incluindo o Reino Unido, iniciaram uma grande limpeza, gastando US$ 1,3 bilhão para desativar e desmontar 197 submarinos nucleares soviéticos, descartar baterias de estrôncio de mil faróis de navegação e começar a remover combustível e resíduos da baía de Andreyeva e de três outros locais costeiros perigosos.

Assim como em outros países, no entanto, o lixo nuclear soviético também era lançado no mar.

Um estudo de viabilidade de 2019 feito por um consórcio incluindo a empresa britânica de segurança nuclear Nuvia encontrou 18 mil objetos radioativos no oceano Ártico, entre eles 19 embarcações e 14 reatores.

Embora a radiação emitida pela maioria desses objetos tenha se aproximado dos níveis mais baixos graças ao acúmulo de lodo, o estudo descobriu que mil deles ainda têm níveis elevados de radiação gama penetrante.

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Em 2035, pode haver até 114 reatores nucleares no Ártico, relatou o Barents Observer, incluindo a usina flutuante Akademik Lomonosov

Do total, 90% estão concentrados em seis objetos que a estatal russa Rosatom pretende reerguer nos próximos 12 anos, segundo Anatoly Grigoriev, chefe de assistência técnica internacional da Rosatom: dois submarinos nucleares e compartimentos de reator de três submarinos nucleares e o quebra-gelo Lenin.

"Nós consideramos extremamente baixa a probabilidade de materiais radioativos vazarem desses objetos, mas é um risco inaceitável para os ecossistemas do Ártico", disse Grigoriev em nota.

Nunca uma limpeza nuclear desse tipo foi realizada no mar. A recuperação dos compartimentos do reator envolverá trabalhos de salvamento em águas geladas que são seguras para tais operações apenas durante três ou quatro meses por ano.

Os dois submarinos nucleares, que juntos contêm 1 milhão de curies de radiação, ou cerca 25% do que foi liberado no primeiro mês do desastre de Fukushima, no Japão, serão um desafio ainda maior.

Um deles é o K-27, outrora conhecido como o "peixe dourado" por causa de seu alto custo. O submarino de ataque de 360 pés (118 m), projetado para caçar outros submarinos, foi atormentado por problemas desde seu lançamento em 1962 com seus reatores experimentais refrigerados a metal líquido, um dos quais se rompeu seis anos depois e expôs nove marinheiros a doses fatais de radiação.

Em 1981 e 1982, a marinha encheu o reator com asfalto e afundou-o a leste da ilha Novaya Zemlya em apenas 108 pés (33 m) de água. Um rebocador teve que bater na proa depois que um buraco aberto nos tanques de lastro levou a afundar apenas a popa.

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No Mar de Barents, como em outras partes do Ártico, a pesca é muito ativa. No entanto, eles estão muito próximos de submarinos nucleares em decomposição no fundo do mar

O K-27 foi afundado após a instalação de algumas medidas de segurança que devem manter os destroços seguros até 2032. Mas outro incidente é mais alarmante. O K-159, um submarino de ataque de 350 pés (107 m) que esteve em serviço de 1963 a 1989. O K-159 afundou sem nenhum aviso, enviando 800 kg de combustível de urânio usado para o fundo do mar sob áreas de pesca e rotas de transporte ao norte de Murmansk.

Thomas Nilsen, editor do jornal online The Barents Observer, descreve os submarinos como um "Chernobyl em câmera lenta no fundo do mar".

Ingar Amundsen, chefe da segurança nuclear internacional da Autoridade Norueguesa de Radiação e Segurança Nuclear, concorda que é uma questão de quando, e não se, os submarinos afundados contaminarão as águas se forem deixados como estão.

"Eles contêm grande quantidade de combustível nuclear usado que com certeza no futuro vazará para o meio ambiente, e sabemos por experiência que apenas pequenas quantidades de contaminação no meio ambiente, ou mesmo rumores, levariam a problemas e consequências econômicas para a pesca. "

'Agosto maldito'
Sergei Lappa nasceu em 1962 em Rubtsovsk, uma pequena cidade nas montanhas Altai, perto da fronteira russa com o Cazaquistão. Embora estivesse a milhares de quilômetros do oceano mais próximo, ele cultivou o interesse pela navegação em um clube de construção naval local e, depois da escola, foi aceito na academia de engenharia naval superior em Sebastopol, na Crimeia.

Alto, atlético e um bom aluno, ele foi designado para o serviço de maior prestígio da marinha: a Frota de Submarinos do Norte.

Após o colapso da União Soviética, no entanto, os militares entraram em um declínio que veio à tona para o mundo quando o submarino de ataque Kursk afundou com 118 tripulantes a bordo em agosto de 2000.

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Alguns submarinos soviéticos, como o K-159, semelhante a este da imagem, estão apodrecendo no fundo do mar

Nessa época, Lappa comandava o K-159, que enferrujava desde 1989 em um píer na isolada cidade naval de Gremikha, apelidada de "ilha dos cães voadores" por seus fortes ventos. Na manhã de 29 de agosto de 2003, a esperada ordem chegou para rebocar o decrépito K-159, que havia sido anexado a quatro pontões de 11 toneladas com cabos para mantê-lo flutuando durante a operação, até uma base perto de Murmansk para desmontagem. A operação seguiria, apesar de uma previsão de tempo com bastante vento.

Com os reatores desligados, Lappa e sua tripulação de nove engenheiros operaram o barco com uma lanterna. O submarino era rebocado perto da ilha Kildin por volta da meia-noite e meia quando os cabos para os pontões da proa quebraram em mar agitado, e meia hora depois foi descoberta água invadindo o oitavo compartimento.

Enquanto o quartel-general lutava contra a decisão de usar um caro helicóptero de resgate, a tripulação continuou tentando manter o submarino flutuando. Às 02h45, Mikhail Gurov enviou uma última transmissão de rádio: "Estamos inundando, faça alguma coisa!" Quando os barcos de resgate do rebocador chegaram, o K-159 estava no fundo, perto da ilha Kildin. Dos três marinheiros que conseguiram escapar, o único sobrevivente foi o tenente-chefe Maxim Tsibulsky, cuja jaqueta de couro se encheu de ar e o manteve na superfície.

Mais um submarino nuclear afundou durante o "maldito" mês de agosto, como descreveram jornais russos, mas esse incidente causou pouco furor em comparação com o Kursk. A Marinha prometeu aos parentes que tiraria o K-159 do fundo do mar no ano seguinte, mas o plano foi adiado diversas vezes.

Mesmo depois de 17 anos de deterioração e corrosão, os ossos da tripulação provavelmente devem estar preservados no submarino, de acordo com Lynne Bell, antropóloga forense da Universidade de Simon Fraser, no Canadá.

Mas as famílias há muito perderam a esperança de recuperar os restos mortais deles.

"Para todos os parentes, seria um alívio se seus pais e maridos fossem enterrados, e ficassem não apenas abandonados no fundo do mar em um casco de aço", diz Dmitry, filho de Gurov. "Mas ninguém acredita que isso vai acontecer."

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A operação de reboque do K-159 foi afetada pelo mau tempo e o submarino acabou afundado

A situação agora mudou, no entanto, à medida que o interesse da Rússia renasce no Ártico e em seus portos soviéticos e cidades militares em ruínas. Desde 2013, sete bases militares árticas e dois terminais de navios-tanque foram construídos como parte da Rota do Mar do Norte, uma rota mais curta para a China que Putin prometeu ter 80 milhões de toneladas de tráfego até 2025.

O K-159 está localizado perto do fim da rota.

Redução de riscos
Rússia, Noruega e outros países cujos barcos de pesca navegam nas abundantes águas do mar de Barents agora se encontram com uma espada de Dâmocles pairando sobre suas cabeças.

Embora uma expedição russo-norueguesa de 2014 ao naufrágio K-159 que examinou a água, o fundo do mar e os animais não tenha encontrado radiação acima dos níveis de fundo (como o registrado em fontes naturais), um especialista do Instituto Kurchatov de Moscou disse à época que uma falha de contenção do reator "poderia acontecer dentro de 30 anos após o naufrágio na melhor das hipóteses e dentro de 10 anos na pior das hipóteses".

Se isso acontecer, liberaria césio-137 e estrôncio-90 radioativos, entre outros isótopos.

Por um lado, o vasto tamanho dos oceanos dilui rapidamente a radiação, mas por outro mesmo níveis muito pequenos podem se concentrar em animais no topo da cadeia alimentar por meio da "bioacumulação" — e então ser ingeridos por humanos.

As consequências econômicas para a indústria pesqueira do mar de Barents, que fornece a vasta maioria do bacalhau e da arinca para os vendedores britânicos de fish and chips (peixe e batatas fritas), "podem ser piores do que as consequências ambientais", diz Hilde Elise Heldal, cientista do Instituto de Pesquisa Marinha da Noruega.

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Os parentes dos que estavam a bordo do K-159 receberam poucas respostas sobre como e quando o submarino poderia voltar a flutuar

Segundo seus estudos, se todo o material radioativo dos reatores do K-159 fosse liberado em uma única "descarga de pulso", aumentaria os níveis de Césio-137 nos músculos do bacalhau no mar de Barents pelo menos 100 vezes.

Isso ainda estaria abaixo dos limites estabelecidos pelo governo norueguês após o acidente de Chernobyl, mas pode ser o suficiente para assustar os consumidores. Mais de 20 países continuam a proibir frutos do mar japoneses, por exemplo, embora os estudos não tenham conseguido encontrar concentrações perigosas de isótopos radioativos em peixes predadores do Pacífico após o acidente na usina nuclear de Fukushima, em 2011. Qualquer proibição de pesca nos mares de Barents e Kara poderia custar às economias russa e norueguesa o equivalente a US$ 140 milhões por mês, de acordo com um estudo de viabilidade da Comissão Europeia sobre o projeto de elevação.

Mas um acidente durante o içamento do submarino, por outro lado, poderia sacudir o reator de repente, potencialmente misturando elementos de combustível e iniciando uma reação em cadeia descontrolada e explosão. Isso poderia aumentar os níveis de radiação em peixes em níveis mil vezes acima do normal ou, se ocorresse na superfície, irradiar para animais terrestres e humanos, aponta outro estudo norueguês.

A Noruega seria forçada então a interromper a vendas de produtos do Ártico, como peixes e carne de rena, por um ano ou mais. O estudo estimou que poderia ser liberada mais radiação do que no incidente da baía de Chazhma em 1985, quando uma reação em cadeia descontrolada durante o reabastecimento de um submarino soviético perto de Vladivostok matou 10 marinheiros.

Amundsen, da Autoridade Norueguesa de Radiação e Segurança Nuclear, argumenta que o risco de tais operações com o K-159 ou o K-27 são baixos e poderiam ser minimizado com um planejamento adequado, como ocorreu durante a remoção do combustível na Baía de Andreyev.

"Nesse caso, não deixamos o problema para as gerações futuras resolverem, quando o conhecimento de como lidar com esses resíduos legados pode se tornar muito limitado."

A segurança e a transparência da indústria nuclear da Rússia têm sido frequentemente questionadas. Recentemente, as autoridades holandesas concluíram que o iodo-131 radioativo detectado no norte da Europa em junho tinha vindo da direção da Rússia ocidental, embora não houvesse prova definitiva de que os radionuclídeos se originaram no país.

A instalação de reprocessamento Mayak, que recebeu o combustível irradiado da Baía de Andreyev de trem, tem uma história conturbada que remonta ao então pior desastre nuclear do mundo em 1957. A Rosatom continua a negar as descobertas de especialistas internacionais de que a instalação era a fonte de uma nuvem radioativa de rutênio-106 registrado na Europa em 2017.

Enquanto o K-159 e o K-27 precisam ser içados, Rashid Alimov, do Greenpeace na Rússia, tem suas reservas sobre os planos. "Estamos preocupados com o andamento dessa obra, a participação da população e o transporte do combustível radioativo até Mayak."

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O desmantelamento de submarinos nucleares da era soviética tem sido lento, enquanto o ritmo de construção de novos navios nucleares acelera

Missão personalizada
Içar um submarino é um feito raro de engenharia. Os Estados Unidos gastaram US$ 800 milhões em uma tentativa de içar outro submarino soviético, o K-129 movido a diesel que transportava vários mísseis nucleares, de 5.000 m no oceano Pacífico. No final, eles conseguiram apenas trazer um terço do submarino para a superfície, deixando a CIA com pouca informação útil disponível.

Esse foi a operação do tipo mais profunda da história. A mais pesada foi que envolve o Kursk. Para trazer o submarino de mísseis de 17 mil toneladas de 108 m abaixo do mar de Barents, as empresas holandesas Mammoet e Smit International instalaram 26 macacos de elevação hidraulicamente amortecidos em uma barcaça gigante e fizeram 26 furos no casco de aço revestido de borracha do submarino com um jato de água operado por mergulhadores.

Em 8 de outubro de 2001, correndo para vencer a temporada de tempestades de inverno após quatro meses de trabalho estressante e diversos atrasos, garras de aço instaladas em 26 buracos levantaram o Kursk do fundo do mar em 14 horas. Depois, a barcaça foi rebocada para um dique seco em Murmansk.

Com menos de 5 mil toneladas, o K-159 é menor do que o Kursk, mas mesmo antes de afundar seu casco externo estava "fraco como folha de alumínio". Desde então, foi cercado em lodo de 17 anos. Um buraco na proa indicava que deveria ser descartada a ideia de enchê-lo de ar e erguê-lo com balões, como foi sugerido à época.

Em uma conferência do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento em dezembro, um representante da Rosatom disse que não havia nenhum navio no mundo capaz de içá-lo, e por isso um navio de salvamento especial teria que ser construído.

Isso aumentará o custo estimado de US$ 330 milhões para resgatar os seis objetos mais radioativos. Os doadores estão discutindo o pedido da Rússia para ajudar a financiar o projeto, disse Balthasar Lindauer, diretor de segurança nuclear do banco.

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O dia de 20 de agosto de 2020 marcou o 20º aniversário do acidente do submarino nuclear Kursk

"Há consenso de que algo precisa ser feito lá", diz ele.

Qualquer embarcação customizada provavelmente precisaria de diversas tecnologias especializadas, como propulsores de proa e popa, para mantê-la posicionada com precisão sobre os destroços.

Em agosto, Grigoriev, chefe de assistência técnica internacional da Rosatom, disse a um site financiado pela empresa que estudavam um plano que envolveria um par de barcaças equipadas com macacos de cabos hidráulicos e presas a ancoradouros em alto mar. Em vez de pinças de aço como as inseridas nos orifícios do submarino Kursk, agora pinças curvas gigantes agarrariam o casco inteiro e o levantariam entre as barcaças.

Uma estrutura parcialmente submersível seria posicionada embaixo e trazida à superfície junto com o submarino. O K-27 e o K-159 podem ser recuperados dessa forma, disse Grigoriev.

Uma das três firmas de engenharia trabalhando em propostas para a Rosatom é a agência de design militar Malachite, que elaborou um projeto para elevar o K-159 em 2007 que "nunca foi realizado por falta de dinheiro", de acordo com seu designer-chefe.

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Pelo menos mais oito submarinos nucleares serão adicionados à Frota do Norte, enquanto os restos da frota nuclear soviética estão no fundo do mar

Este ano, a agência começou a atualizar este plano, disse um funcionário ao BBC Future Planet no saguão da sede de Malachite em São Petersburgo. Muitas questões permanecem, no entanto. "Em que condições está o casco? Quanta força pode aguentar? Quanto lodo foi acumulado? Precisamos pesquisar as condições lá ", diz o funcionário, pouco antes que o chefe da segurança chegasse para interromper a entrevista.

Paradoxo nuclear
Remover seis objetos radioativos se encaixa com a imagem que Putin tem construído como defensor do frágil meio-ambiente do Ártico. Em 2017, ele inspecionou os resultados de uma operação para remover 42 mil toneladas de sucata do arquipélago da Terra de Francisco José, como parte de uma grande faxina no Ártico.

Ele falou sobre preservação ambiental em uma conferência anual para as nações do Ártico. E no mesmo dia em março de 2020 em que emitiu seu projeto de decreto sobre os objetos afundados, Putin assinou políticas para o Ártico que listam "proteger o meio ambiente ártico e as terras nativas e a subsistência tradicional dos povos indígenas" como 1 dos 6 interesses nacionais no região.

Mas enquanto busca um Ártico "limpo", o Kremlin também impulsiona o desenvolvimento da exploração de óleo e gás na região, que respondem pela maioria do transporte na Rota do Mar do Norte, que passa pelo Estreito de Bering.
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Após 17 anos, Vladimir Putin lançou uma iniciativa para resgatar dois submarinos nucleares soviéticos

A estatal Gazprom construiu um dos dois polos de petróleo e gás na península de Yamal e, neste ano, o governo reduziu os impostos sobre os novos projetos de gás natural liquefeito do Ártico para 0% para aproveitar alguns dos trilhões de dólares de combustível fóssil e riqueza mineral localizados na região.

E se Putin limpa o legado nuclear soviético no extremo norte, ele próprio está construindo seu legado nuclear. Além de novos quebra-gelos nucleares, a única usina nuclear flutuante do mundo em 2019 tornou novamente o Ártico as águas mais nucleares do planeta.

Enquanto isso, a Frota do Norte está construindo pelo menos oito submarinos e tem planos para construir vários outros, bem como oito destruidores de mísseis e um porta-aviões, todos eles movidos a energia nuclear. Também está testando um drone subaquatico com propulsão nuclear e um míssil de cruzeiro. No total, poderia haver até 114 reatores nucleares em operação no Ártico até 2035, quase o dobro de hoje, apontou um estudo de 2019 do site jornalístico Barents Observer.

Essa expansão não se deu sem intercorrências. Em julho de 2019, um incêndio em um submersível nuclear perto de Murmansk quase causou uma "catástrofe em escala global", disse um oficial no funeral dos 14 marinheiros mortos.

No mês seguinte, um "sistema de propulsão reativa de combustível líquido" explodiu durante um teste em uma plataforma flutuante no Mar Branco, matando dois dos envolvidos e aumentando brevemente os níveis de radiação na cidade vizinha de Severodvinsk.

"Hoje há cada vez mais políticos na Noruega e na Europa que pensam que é um paradoxo realmente grande que a comunidade internacional esteja dando ajuda para proteger o legado da Guerra Fria, enquanto parece que a Rússia está dando prioridade à construção de uma nova Guerra Fria", afirmou Nilsen, do The Barents Observer.

Dessa forma, a atual limpeza nuclear a passos lentos pode ser a maior de seu tipo na história, mas pode acabar sendo apenas um prelúdio do que será necessário para lidar com a próxima onda de energia nuclear no Ártico.

Se quiser ler o artigo original em inglês, pode acessá-lo neste link.

Fonte: BBC

Expedição científica diz adeus ao Ártico

Expedição científica diz adeus ao Ártico

A pandemia casou dificuldades à mais ambiciosa expedição já organizada para estudar a região. Depois de um ano, o navio de pesquisa alemão Polarstern inicia sua viagem de retorno – trazendo dados nada animadores.

Autoria Alexander Freund
24.09.2020

As mudanças climáticas foram sentidas pela tripulação já na viagem de ida. Por causa da ausência de gelo, navio não teve dificuldades para chegar ao Polo Norte

Após um ano no "gelo eterno", o navio quebra-gelo alemão de pesquisa Polarstern (estrela polar, em alemão), que estava a milhares de quilômetros de distância de qualquer epicentro do coronavírus, acabou tendo a logística de sua expedição ao Ártico impactada pela pandemia.

Revezamentos na tripulação não puderam ocorrer como planejado, navios de abastecimento atrasaram ou não puderam atracar, e voos de reconhecimento planejados para apoiar os cientistas no gelo não aconteceram porque o aeroporto de Svalbard, na Noruega, foi temporariamente fechado devido à pandemia.

Por causa da pandemia, navios de suprimentos e com novos tripulantes acabaram sofrendo atrasos para alcançar o Polarstern

Para alguns tripulantes da expedição MOSAiC (sigla em inglês para Observatório Flutuante Multidisciplinar para o Estudo do Clima do Ártico), o tempo passado a bordo pode ter parecido ainda mais longo devido às difíceis opções de comunicação. Além disso, os pesquisadores tiveram que trabalhar metade do tempo na noite polar, quando a escuridão nessa região se estende por semanas, 24 horas por dia. 

Como despedida, o time de pesquisadores, de diferentes partes do globo, tirou uma foto junto – e nesta terça-feira (22/09) foi dada a largada para a viagem de retorno.

Maior expedição ao Ártico já organizada
O navio de pesquisa é aguardado ansiosamente de volta ao seu porto de origem, Bremerhaven, na Alemanha, em 12 de outubro. O navio quebra-gelo partiu de Tromsø, na Noruega, em 20 de setembro de 2019.

Sob a direção do Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Polar e Marinha em Bremerhaven (AWI, na sigla em alemão), se agarrou num bloco de gelo durante quase um ano, só se movimentando quando se deixava levar pela corrente do gelo flutuante. O objetivo era realizar medições extensas no gelo, no oceano e na atmosfera.

De acordo com o AWI, mais de 70 institutos de pesquisa de quase 20 países e centenas de pesquisadores estiveram envolvidos nessa que é a maior expedição ao Ártico já organizada. Os pesquisadores esperam que as pesquisas forneçam novos dados sobre as mudanças climáticas do mundo. A avaliação real de todos os dados só deve começar após o retorno da expedição.

Mudanças climáticas sentidas imediatamente
Antes mesmo da análise dos dados, os pesquisadores já avaliam que as mudanças climáticas estão afetando o Ártico numa escala alarmante. De acordo com o AWI, novas ondas de calor já teriam afetado o gelo tanto de cima quanto de baixo e derretido uma grande área. Nenhuma outra região do mundo está aquecendo mais rápido do que o Ártico.

O Centro de Dados Nacional de Neve e Gelo dos Estados Unidos (NSIDC, na sigla em inglês), em Boulder, Colorado, anunciou na terça-feira que o gelo marinho no Ártico havia encolhido para a segunda menor extensão desde que as medições começaram, há cerca de 40 anos. Com 3,74 milhões de quilômetros quadrados, o mínimo para este ano provavelmente foi atingido na semana passada, de acordo com as autoridades americanas.

"Foi um ano louco no norte, com o gelo do mar perto de um mínimo recorde, ondas de calor de quase 40 graus na Sibéria e grandes incêndios florestais", disse o chefe do NSIDC, Mark Serreze. "O ano de 2020 será um ponto de exclamação em uma tendência de baixa na expansão do gelo marinho do Ártico. Estamos caminhando para um Oceano Ártico sazonalmente livre de gelo e este ano foi mais um prego no caixão."

Ao partir de Tromsø, na Noruega, o Polarstern já havia navegado por uma área marítima na qual os quebra-gelos costumavam enfrentar dificuldades para cruzar o gelo espesso que encobria o mar. Em setembro passado, o navio precisou de apenas seis dias para chegar ao Polo Norte.

"Às vezes tínhamos mar aberto até onde a vista alcançava", disse o líder da expedição MOSAiC, Markus Rex, referindo-se à área geralmente coberta por espesso gelo marinho. "Eu nunca tinha experimentado isso antes tão ao norte", acrescentou o capitão do Polarstern, Thomas Wunderlich.

Fonte: DW

Por que os cientistas construíram a câmera que tirou a maior foto da história

Por que os cientistas construíram a câmera que tirou a maior foto da história

Imagem tem 3.200 megapixels, 32 vezes mais que as câmeras dos celulares mais avançados, e exigiria 378 telas de alta definição para ser mostrada por inteiro

DANIEL MEDIAVILLA
14 SEP 2020 - 17:40 BRT

Câmera digital com a maior resolução do mundo, capaz de fazer fotos de 3.200 MP./ EUROPA PRESS

Sydney Brenner, prêmio Nobel de Medicina, disse certa vez que “o progresso científico depende de novas técnicas, novos descobrimentos e novas ideias, provavelmente nessa ordem”. Ele mesmo deu o exemplo criando um modelo animal, o verme C. elegans, que serviu para testar muitas das ideias sobre genética discutidas durante as décadas anteriores. Da mesma forma, há na história da ciência dezenas de outros exemplos que sustentam essa hipótese. Giordano Bruno já propunha no século XVI a existência de múltiplos mundos no universo – um dos motivos que o levaram a ser queimado vivo pela Igreja –, mas foram necessários quatro séculos e novas técnicas para que, a partir da década de 1990, centenas de planetas fora do Sistema Solar começassem a ser descobertos. Nesta semana, anunciou-se a última prova de uma dessas novas técnicas capazes de fazer descobertas decisivas para testar certas ideias e fazer a ciência avançar.

O marco é a maior foto já tirada em uma só exposição. Essa imagem, de 3.200 megapixels (as câmeras dos celulares mais avançados têm pouco mais de 100), tem como modelo a cientista Vera Rubin (1928-2016), descobridora da matéria escura, e é uma prova da capacidade da Câmera da Investigação do Espaço-Tempo (LSST, na sigla em inglês) montada no Laboratório Nacional de Aceleradores SLAC (EUA). Contam os responsáveis pelo artefato que a foto tirada pela LSST é tão grande que necessitaria de 378 telas de televisão 4K de ultradefinição para ser mostrada em tamanho completo.

Depois de testar seu poderio, esta ferramenta será instalada em 2021 no Observatório Vera C. Rubin, que está sendo construído no alto do monte Pachón, a mais de 2.600 metros de altitude, no deserto chileno do Atacama. Ali, em um ambiente com noites extremamente escuras e secas, o céu é suficientemente límpido para não borrar ainda mais objetos tremendamente longínquos, cuja luz chega à Terra como uma mancha difusa. O objetivo da maior câmera digital já fabricada será fazer em intervalos de poucos dias imagens completas do céu do Hemisfério Sul. Esta atividade será mantida por pelo menos uma década e permitirá acompanhar de forma minuciosa os movimentos e transformações de dezenas de bilhões de galáxias e estrelas.

Os objetivos científicos do Observatório Rubin são múltiplos. Um dos principais e que homenageia a mulher que lhe dá nome é o estudo da natureza da matéria escura e da energia escura. Ao multiplicar o número de galáxias e estrelas observadas e fazê-lo durante muitos anos, será possível conhecer melhor seus movimentos com o passar do tempo e como eles distorcem o tecido do espaço-tempo. Rubin descobriu que deveria existir uma matéria invisível no cosmo porque a observação de muitas galáxias lhe permitiu ver que rodavam muito rapidamente para conterem apenas matéria visível. O novo observatório, com inauguração prevista para 2022, aprofundará esse caminho.

Essa vigilância permanente do universo também servirá como sistema de alerta para que não escapem fenômenos únicos. A eclosão de uma estrela, por exemplo, é algo que pode ser muito efêmero, e um aviso a tempo pode dirigir os olhares de outros telescópios para um fato que, do contrário, poderia passar despercebido ou demorar muito a ser revelado.

A gigantesca câmera capturará galáxias e fenômenos a milhões de anos-luz de distância, mas as imagens tiradas por esse artefato de três toneladas também capturarão o que acontece mais perto. O Observatório Rubin seguirá asteroides com mais de 140 metros de diâmetro, os mais perigosos para os habitantes da Terra, em seus movimentos pelo Sistema Solar e arredores.

Como dizia Brenner, a nova tecnologia desenvolvida pelo SLAC permitirá realizar novas descobertas, que provem ou descartem velhas ideias e nos levem a nos cogitar outras novas.

Fonte: El País

Por que baleias e golfinhos encalham?

Por que baleias e golfinhos encalham?

Sempre ocorreram encalhes em massa de baleias e golfinhos. Todos os anos, cerca de 2 mil mamíferos marinhos morrem assim no mundo. E nem sempre as causas são naturais.

Alexander Freund
24.09.2020

Baleias encalhadas na Nova Zelândia, em fevereiro de 2017

Quais baleias e golfinhos costumam encalhar? E onde?
Os encalhes em massa mais comuns envolvem baleias-pilotos e cachalotes, baleias-bicudas e golfinhos-rotadores. As baleias de barbatana, que incluem todas as baleias grandes, exceto o cachalote, raramente acabam encalhadas.

Se encalham, os mamíferos podem secar e passar por um processo de hipertermia, sufocar ou sofrer graves lesões internas devido ao seu enorme peso.

Encalhes individuais já foram observados em muitos lugares, enquanto a maioria dos encalhes em massa foi registrada na Austrália Ocidental, Nova Zelândia (com até 300 baleias encalhadas anualmente), na costa leste da América do Norte e na Patagônia chilena. Ocasionalmente, porém, também ocorrem encalhes em massa no Mar do Norte.

Como as baleias e os golfinhos se orientam?
Semelhante às aves migratórias, algumas espécies de baleias viajam grandes distâncias todos os anos. No inverno, as baleias migram em direção ao sul, dos mares frios do norte para águas mais quentes. E as baleias das águas do sul são atraídas para o norte. Meses depois, elas começam sua jornada para casa.

Já os pequenos odontocetos, uma subordem dos cetáceos (alguns são conhecidos popularmente como "baleias com dentes"), como os golfinhos e toninhas, possuem um sonar subaquático poderoso. Eles se orientam em suas jornadas enviando ondas sonoras em forma de cliques. Se essas colidem com um objeto, as ondas sonoras refletidas ecoam de volta aos ouvidos, que, no caso das baleias e golfinhos, são protegidos pelo crânio em câmaras cheias de espuma para permitir a audição espacial. Quanto mais rápido o som retornar, mais perto estará a presa, um obstáculo ou a costa.

Voluntária tenta ajudar um grupo de mais de 200 baleais que ficaram encalhadas na costa da Austrália, em setembro de 2020

No caso das grandes baleias de barbatanas – que têm "barbas" (grandes placas de queratina organizadas em filas) em vez de dentes em sua mandíbula superior e, portanto, filtram krill (um invertebrado semelhante ao camarão), plâncton animal e pequenos peixes da água – este sonar subaquático não é tão desenvolvido.

A ecolocalização ou biossonar funciona muito bem em princípio, mas a reflexão do som não funciona de maneira confiável em baías rasas ou semicirculares, aterros submarinos arenosos ou bancos de lodo. Como essas costas ou obstáculos não retornam um eco claro de nenhuma direção, o sistema de advertência acaba falhando.

Que influência tem o campo magnético da Terra?
Mamíferos como a baleia-piloto não apenas se orientam por meio de seu sonar subaquático, mas, assim como pássaros migratórios, também usam as linhas do campo magnético da Terra. Isso porque as migrações geralmente ocorrem paralelas às linhas magnéticas. Assim, as pequenas flutuações no campo magnético terrestre funcionam como uma espécie de mapa.

Baleia cachalote encalhada na costa alemã, em janeiro de 2016

Cristais de magnetita foram encontrados nos crânios dos animais. As baleias podem ficar irritadas com distúrbios no campo magnético da Terra perto da costa. Campos magnéticos perpendiculares ao continente também foram associados ao encalhe em massa de baleias em certas regiões costeiras.

Também ocorrem grandes mudanças no campo magnético da Terra regularmente devido a tempestades solares e manchas solares. É justamente nesses momentos que cachalotes, por exemplo, se perdem e vão parar no Mar do Norte. Elas também usam o geomagnetismo como sistema natural de navegação.

Por que então baleias e golfinhos acabam encalhadas?
A principal causa de encalhes de baleias é, portanto, atribuída a um erro de navegação pelos animais, mas nem todas as causas foram investigadas de forma conclusiva.

Outra razão para encalhes em massa é certamente o comportamento social de muitas espécies de baleias que vivem em grupos, os chamados cardumes de baleias, que são guiados por um líder. No caso das cachalotes, um macho lidera o caminho do Oceano Ártico de volta às águas mais quentes. Já com as orcas, uma mãe ou avó costuma liderar o grupo.

Em terra, os mamíferos podem secar, sufocar ou sofrer ferimentos internos

Se o animal líder perde a orientação porque está confuso ou sofrendo com parasitas no seu ouvido, por exemplo, ele não é mais capaz de ouvir o eco dos cliques enviados. Assim, os cetáceos acabam seguindo o animal líder na direção errada. Se o líder ficar preso em águas rasas, o resto do grupo não vai hesitar em segui-lo, mesmo que isso signifique a ruína do cardume.

Às vezes, essa fidelidade vai tão longe, que baleias resgatadas depois de um encalhe em massa acabam voltando à praia para ficar com o restante do grupo, como já foi observado com orcas na costa sul-africana.

Além dos erros de navegação, o encalhe também pode ter razões bastante naturais: às vezes, golfinhos menores acabaram encalhados porque fugiram para águas mais rasas de orcas e outros predadores ou porque se aventuraram muito longe no raso quando caçavam cardumes de peixes.

Ocasionalmente, animais individuais que foram previamente feridos em colisões com navios, redes de pesca ou ataques de tubarões, ou que ficaram doentes por causa de infecções ou parasitas, acabam se dirigindo para a costa.

Quais são as influências humanas que agravam a situação?
Além dos fatores naturais, o ruído subaquático produzido pelo homem – por meio de navios, quebra-gelos, plataformas de petróleo ou dispositivos de sonar militares – pode ter um impacto enorme na orientação e comunicação dos mamíferos marinhos. Desorientados, eles fogem das fortes ondas sonoras. E como a densidade da água é muito maior do que a do ar, o som viaja cerca de cinco vezes mais rápido debaixo d'água do que no ar.

Dispositivos militares como sonares de alto desempenho podem afetar a orientação dos mamíferos marinhos

O uso de sonares militares têm efeitos particularmente drásticos. Por exemplo, baleias-bicudas acabaram morrendo nas costa do Chipre, das Ilhas Canárias e das Bahamas após manobras da Otan. Sonares que emitiam mais de 200 decibéis haviam desencadeado a formação de bolhas de gás nos vasos sanguíneos e órgãos dos mamíferos marinhos (como acontece na chamada doença de descompressão, que acomete mergulhadores).

Como ajudar baleias e golfinhos encalhados?
Quando uma baleia encalhada é encontrada numa praia, geralmente não há muito tempo para agir. As equipes de socorro podem tentar resfriar os animais encalhados, mantendo-os úmidos. Muita força é necessária para devolvê-los ao mar o mais rapidamente e suavemente possível.

Para mobilizar ajudantes o mais rápido possível, alguns países estabeleceram serviços de emergência, com linhas diretas. Para muitos animais exaustos, no entanto, mesmo essas medidas costumam chegar tarde demais.

Fonte: DW

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

“É cruel”: professores encaram aulas virtuais com 300 alunos e demissões por ‘pop-up’ na tela

“É cruel”: professores encaram aulas virtuais com 300 alunos e demissões por ‘pop-up’ na tela

Em meio à pandemia, milhares de docentes foram demitidos de universidades privadas em São Paulo e relatam precarização e depressão

THIAGO DOMENICI (AGÊNCIA PÚBLICA)
22 SEP 2020 - 21:47 BRT

Campus da universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. DIVULGAÇÃO

“A palavra que melhor define meu momento é desespero”, conta Horácio*, professor da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, do grupo Laureate, referindo-se à redução de 75% das suas horas de trabalho no atual semestre letivo.

Com mais de oito anos de Anhembi, o professor desabafou em julho num e-mail enviado ao Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro). “A redução de 24 para seis horas-aula torna o meu sustento inviável, visto que minha única fonte de renda é a Anhembi. É cruel…”.

Enzo*, professor de outra universidade do grupo Laureate, a FMU, passou de 21 horas semanais no último semestre para apenas três horas. Ele diz que a maioria dos professores está nessa situação. “Nós estamos recebendo em média R$ 500 por mês".

A redução das horas de trabalho é um dos aspectos de um movimento do ensino superior privado que Celso Napolitano, representante do Sinpro, chamou de “imoral, mas legal”. Napolitano argumenta que cortes de hora-aula e demissões estão ocorrendo em outras universidades privadas país afora. Na Universidade Nove de Julho (Uninove), cerca de 500 docentes foram demitidos no primeiro semestre do ano.

Em uma reunião on-line presenciada pela reportagem, professores contaram sobre a indigesta surpresa que foi saber da demissão por uma mensagem de pop-up na tela do computador ao acessar o sistema. “É emocionalmente pesado, depois de tantos anos trabalhando lá”, contou um deles, sob anonimato.

Demissão à distância: mensagem de pop-up demitiu centenas na Uninove. REPRODUÇÃO

Desde abril, o Sinpro contabilizou mais de 1.600 demissões de professores em universidades de São Paulo, todas em meio à pandemia de coronavírus. Negociando com as universidades a situação trabalhista dos docentes, o diretor do Sinpro confessa estar angustiado com “a precarização do ensino superior privado”, sobretudo com o aumento do uso de educação a distância (EAD). Para Napolitano, a pandemia é uma desculpa para reestruturação e maximização de lucros.

Como justificativa, as universidades citam a redução de alunos matriculados, o aumento da evasão escolar e a inadimplência durante a pandemia. Para o docente Horácio, não está provado que “houve redução do número de matrículas que justificasse a redução na carga horária dos professores” da Anhembi, por exemplo.

“Se a instituição não comprovar a redução do número de alunos matriculados, ela tem que manter o salário do professor”, diz Napolitano, que avalia que as situações serão tratadas individualmente.

Evaristo*, outro professor da FMU, desde 2012 na instituição, tem mais de quatro anos de remuneração não recebidas por horas extras em atividades de dependência (Dep) e adaptação (Adap). Não bastasse a situação, recebeu em julho e agosto R$ 48 de salário —quando deveria ter recebido perto de R$ 800. Ele conta que fez greve por 12 dias até a situação ser encaminhada para uma resolução da universidade.

Professor recebeu em julho e agosto R$ 48 de salário, quando deveria ter recebido perto de R$ 800. REPRODUÇÃO

O docente acredita que será demitido como retaliação ao final do semestre por ter protestado com coordenadores em grupos de WhatsApp e avisado alunos da disciplina. “Os alunos ficaram três semanas sem minhas aulas e eles colocaram um professor de outra área, que não sabia o que fazer”, afirma.

A Pública já denunciou, no caso da Laureate, que, sem que alunos soubessem, houve uso de robôs no lugar de professores para correções de atividades EAD, fraudes em atas para reconhecimento de cursos e demissões em massa para contratação de profissionais por salários menores, chamados de tutores.

Superlotação on-line
Segundo os professores consultados pela reportagem, ao reduzirem a carga horária dos docentes, as universidades diminuíram também a quantidade de disciplinas oferecidas, o que aumentou significativamente o número de estudantes em cada matéria. “'Ensalaram' as turmas”, diz Napolitano.

O professor Horácio explica o que é “ensalar” turmas: “Colocaram alunos de semestres diferentes em uma mesma turma. Por exemplo, um aluno ingressante do primeiro semestre foi alocado em uma disciplina de segundo semestre junto aos alunos do próprio segundo semestre; também colocaram alunos de diferentes cursos em uma mesma turma ou colocaram alunos de campus diferentes em uma mesma turma”, diz.

Lorena*, de 21 anos, que estuda engenharia ambiental e sanitária na Anhembi Morumbi, diz que o número varia de acordo com a aula. “Não sei quantas pessoas tem na chamada, mas assistindo aula tem 250 de segunda-feira, que é a aula mais lotada. Outros alunos da minha sala não conseguem entrar quando dá o limite da sala de 250 pessoas. Aparece um aviso de que a sala está lotada. Nas demais aulas tem mais de cem”, afirma.

Joana*, que está no segundo semestre de recursos humanos, também vive situação similar. “Este semestre está perdido”, avalia. Dividindo as aulas de gestão de pessoas, liderança e diagnóstico organizacional com a turma de administração do sexto semestre, ela afirma que entra no sistema on-line com uma hora de antecedência. “O sistema fica pesado e cai se você entra muito em cima”, conta. “Na última aula, minha professora ficou uns 40 minutos só chamando as turmas para poder ponderar as dúvidas de cinco turmas, umas 250 pessoas".

A estudante Maria Laura, que faz psicologia na Anhembi no campus Mooca, diz que suas aulas são compartilhadas com o campus da Vila Olímpia e que chegaram a estar juntas as turmas de São José, Piracicaba, Vila Olímpia e Mooca. “Mais de 230 alunos”, diz.

Enzo, professor da FMU, afirma: “É muito mais barato para a faculdade pagar um professor por três horas, meu caso, para falar com 200 alunos online do que pagar mais professores para ficar cada um com várias turmas de 50 alunos”.

Numa troca de mensagens entre professores da FMU, eles comentam a situação: “À noite juntaram na minha aula 310 alunos. Com 170 presentes na última sexta. Vamos ver nesta sexta com os calouros”. Em resposta, outro professor diz: “Poxa vida, e quem vai corrigir 310 provas e trabalhos?”. “Vai ser tudo múltipla escolha. Acha que vou corrigir? Já vai dar trabalho para lançar…”, resigna-se o docente.

Estudante de jornalismo da Anhembi Morumbi, Caio Andrade avalia que a experiência dessas aulas a distância é um misto de descontentamento e “fazer o melhor que dá”. “O ensino em si, de compartilhar e construir um conhecimento juntos, entre professor e alunos, está totalmente defasado”, avalia.

Professores da FMU comentam a situação vivida no semestre com salas online super lotadas. REPRODUÇÃO

Maria Laura, a estudante de psicologia, concorda e diz que a postura da faculdade é “incoerente”. “As aulas perderam a sua qualidade, que já estavam diferentes por serem on-line em vez de presencial, e vemos apenas como redução de custo da faculdade".

Toda essa situação se “reflete na aprendizagem do aluno”, dizem os entrevistados. Para Caio, “em faculdades particulares os alunos são tratados como números pelas instituições, e, durante esse tempo de isolamento e início de aulas a distância, esse fato só foi escancarado”.

O professor Enzo esclarece que está dando o seu “melhor na medida do possível”. “Os alunos não têm culpa alguma. São vítimas”, afirma.

Indagado sobre a legalidade de colocar centenas de alunos numa mesma sala on-line, Napolitano responde sem rodeios: “É um absurdo, mas os mantenedores, com quem negocio, me dizem assim: ‘O MEC permite, o CNE [Conselho Nacional de Educação] permite’”.

Com o avanço da pandemia, quase todas as universidades brasileiras colocaram em prática o ensino a distância em 100% das turmas.

Hoje, a ampliação de disciplinas EAD de 20% para 40% permitida pelo MEC em dezembro nas graduações presenciais é o trunfo de muitos grupos educacionais em meio à redução do Fies —o fundo de financiamento estudantil— em que o governo garante o pagamento das mensalidades e o aluno paga com juros subsidiados depois de se formar.

Com a portaria do MEC, um curso considerado presencial pode, em tese, ter de cinco dias de aula, dois remotos e três presenciais na semana. A situação, explica Napolitano, diminui custos e amplia lucros.

Procurado, o MEC não respondeu até a publicação. Já o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp) diz que em relação às queixas sobre as aulas remotas durante a pandemia não cabe ao Semesp interferir nas decisões estratégicas das instituições. Afirma, no entanto, que “apesar de contratempos”, “a maioria dos estudantes” aprovou a experiência com as aulas on-line, segundo pesquisa realizada pela entidade.

Saúde mental: 300 pedidos em cinco horas
O professor Horácio, citado no início desta reportagem, não tem conseguido arcar com as despesas do dia a dia, tais como pagamento de contas e até mesmo compra de alimentos. “Realmente, estou extremamente angustiado, pois não sei como irei sobreviver. Estou comendo menos e coisas mais baratas”, diz. “Sabe aquela história de pedir uma pizza no final de semana? Faz muito tempo. Eu nem sei mais o que é pizza".

A situação toda impactou também a saúde mental de Horácio. Em meio ao entusiasmo de ser professor —“Eu adoro dar aula. Na hora que começa a aula, é uma delícia, é uma maravilha, parece que eu estou em outro mundo”— ele relatou o choque emocional a que foi submetido. “Faço tratamento psiquiátrico faz algum tempo e meu quadro se agravou quando recebi a notícia dessa redução absurda na carga horária”, diz. “A minha angústia e ansiedade aumentaram drasticamente. Comecei a ter até pensamentos suicidas, só pra você ter uma noção do grau que eu cheguei”, desabafa.

Gabriel Teixeira, da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, espaço de articulação e mobilização política dos educadores e educadoras das instituições de ensino superior (IES) privadas, avalia que profissionais como Horácio têm vivenciado situações de muito sofrimento e enormes desafios durante a pandemia da covid-19.

“Enquanto as IES usam a pandemia da covid-19 como oportunidade para experimentar novos formatos de contrato de trabalho, professores se veem sobrecarregados, com salários diminuídos e com a difícil tarefa de equilibrar tarefas domésticas, pessoais e de trabalho na modalidade home office”, critica.

Em agosto, Gabriel lançou uma Plataforma de Apoio Psicológico para Profissionais da Educação, iniciativa gratuita da Rede de Educadores. “Temos visto um número expressivo de professores com crises de ansiedade, sobrecarregados e com rendimentos diminuídos, embora trabalhando mais do que antes do isolamento social”, diz.

A demanda por atendimento psicológico foi grande e as inscrições para o atendimento na plataforma se encerraram horas após o lançamento. “Foram 300 pedidos de atendimento em cinco horas”, afirma Gabriel.

Outro lado
Procurada, a Anhembi Morumbi informou em nota (leia a íntegra) que fez demissões pontuais de professores no último mês, “apenas e tão somente daqueles que demonstraram interesse em não permanecer conosco, não aceitando a carga horária ofertada para o segundo semestre conforme previsto em Convenção Coletiva de Trabalho, e acompanhada pelo Sinpro SP, não sendo a intenção da Instituição demitir outros docentes”, e que tem colhido “excelentes feedbacks dos estudantes e professores a respeito das aulas síncronas”.

Já a FMU diz (leia a íntegra) que com a “continuidade da pandemia e consequente redução na renda de uma parcela significativa da população, uma boa parte dos nossos alunos não deu sequência aos estudos. Com menos alunos houve redução no número de aulas e, como consequência, sobraram menos aulas por docente. Dessa forma, foi necessário realizar ajustes na carga horária dos docentes”.

Além disso, afirmou que “diálogo, transparência e atenção não faltam na Instituição não só com os docentes, mas também com seus alunos e demais colaboradores”.

* Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.

Reportagem originalmente publicada no site da Agência Pública.

Fonte: El País